ALFABETOS DE SILICONE: ENSAIO SOBRE O NOVO ANALFABETISMO DIGITAL
José Antônio Lucindo da Silva
Blog: www.maispertodaignorancia.blogspot.com
RESUMO
Neste ensaio, proponho uma reflexão crítica sobre o que denomino “analfabetismo digital”, um fenômeno não marcado pela ausência de ferramentas, mas pela perda da capacidade de extrair sentido das tecnologias. Inspirado por Freud, Byung-Chul Han e Zygmunt Bauman, discuto como a liquidez contemporânea, a performatividade digital e a ausência de rituais simbólicos contribuem para uma regressão cognitiva disfarçada de avanço. Argumento que o uso automático de inteligências artificiais, aplicativos e plataformas tem substituído a dúvida genuína por um consumo ansioso de respostas, gerando uma nova forma de ignorância ilustrada. O texto termina com caminhos provisórios de enfrentamento e com uma provocação: será que até nossa crítica não se tornou sintoma do que tentamos combater?
Palavras-chave: analfabetismo digital. experiência. Freud. Bauman. Byung-Chul Han.
1 INTRODUÇÃO
A cada clique, delegamos ao algoritmo o que outrora era exigência do espírito: duvidar, investigar, elaborar. O presente texto parte da observação de que o avanço tecnológico, longe de ser emancipador, tem infantilizado o sujeito. A questão central é: que tipo de alfabetização está se instaurando quando a dúvida se torna incômoda e o saber é terceirizado para uma máquina?
2 O ORÁCULO DE SILÍCIO E O PRAZER IMEDIATO
Troquei a dúvida – esse músculo do espírito – por um prompt preguiçoso. A inteligência artificial serve fast-food cognitivo; eu, faminto por atalhos, aceito a bandeja. O prazer imediato evita o incômodo da investigação, e o cérebro, ávido por dopamina, agradece. Nasce aqui o analfabetismo tecnológico: saber acionar a máquina sem sujeitar-se ao atrito da pergunta honesta.
3 A CRISE DA NARRAÇÃO SEGUNDO HAN
Byung-Chul Han denuncia a dissolução da experiência na era da hipercomunicação. Segundo ele, o sujeito se vê seduzido por micro-histórias e performances de si. A narrativa, que exige tempo e elaboração, dá lugar ao “storyselling”. Sem paciência narrativa, perdemos a capacidade de transformar informação em sabedoria vivida.
4 BAUMAN E A LIQUIDEZ DO CONHECIMENTO
Zygmunt Bauman descreve a modernidade como um estado de liquefação constante. Tudo é plug-and-play, inclusive o conhecimento. A leveza prometida pelo digital resulta em descartabilidade: aprendemos hoje o que caduca amanhã. Relações de bolso, identidades de bolso — sempre prontas a serem deletadas.
5 FREUD E O MAL-ESTAR CIVILIZACIONAL
Freud já alertava que a civilização impõe renúncias que retornam como sintomas. Ao equipar-se de “poderes protéticos”, o homem contemporâneo não elimina o conflito: ele o desvia. A impossibilidade de sublimação coletiva e a falência dos rituais tornam a atualização infinita uma compulsão. O recalque retorna como ansiedade, trollagem e fúria online.
6 ONDE OS AUTORES SE CRUZAM
Ponto de tensão Han – Instante Bauman – Liquidez Freud – Mal-estar
Tempo Supremacia do clique Aceleração Prazer versus realidade
Laços Vácuo narrativo Relações de bolso Renúncia instintual
Sintoma Pobreza de experiência Insegurança permanente Retorno do recalcado
7 O ANALFABETISMO COMO SINTOMA MATERIAL
O novo analfabeto não é aquele que não sabe usar a máquina, mas o que não transforma técnica em sentido. Cada atualização exige reaprendizado superficial, promovendo regressão. A gratificação instantânea não liberta; ela dissolve o tempo da elaboração e adensa o vazio.
8 POSSÍVEIS CAMINHOS DE SAÍDA (AINDA EM MODO AVIÃO)
1. Re‑ritualizar o digital: clubes de leitura, podcasts longos, oficinas de escrita lenta.
2. Educar para a historicidade: compreender a tecnologia como produto histórico e não como destino.
3. Solidificar vínculos: projetos cooperativos duradouros — da ciência cidadã ao jardim coletivo.
4. Sublimar sem ilusão: aceitar o mal-estar estrutural e convertê-lo em arte, pesquisa, política.
9 QUANDO A CRÍTICA VIROU SINTOMA
Citar Freud, Bauman e Han pode ser apenas ornamento. A crítica que não se ancora na experiência corre o risco de performar o próprio mal-estar que denuncia. A pergunta que inquieta é: como devolver corpo à pergunta antes que ela vire GIF motivacional?
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
SILVA, José Antônio Lucindo da. Alfabetos de silicone: esboço de um ensaio sobre o novo analfabetismo digital. Blog Mais Perto da Ignorância, 2025. Disponível em: http://www.maispertodaignorancia.blogspot.com
Link da fonte:
https://www.terra.com.br/byte/novo-analfabetismo-nao-se-trata-de-saber-ler-ou-escrever-trata-se-de-usar-a-ia-como-um-oraculo-e-nao-como-uma-ferramenta,02d97e8ba6989ad83441bec08ffecc809fypimcu.html#google_vignette
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