Avançar para o conteúdo principal

“Quando o Prompt Vira Autor — e Eu Viro o Suspeito”





“Quando o Prompt Vira Autor — e Eu Viro o Suspeito”

Por José Antônio Lucindo da Silva 

1. Confissões de um escriba siliconado

Eu, que passo boa parte do dia metabolizando Lacan e girando parafusos na laminação, descubro-me agora réu confesso: redijo textos “com ajuda da IA”. A patrulha literária late: “Mas isso não é autenticamente humano!” Eu ergo o dedo — irônico, não acusatório — e respondo: “Humano é justamente terceirizar o trabalho pesado; quem duvida que leia a história da roda.”

A Inteligência Artificial não rouba meu lugar de autor; ela ocupa o espaço vazio deixado por minha preguiça de consultar fichas bibliográficas às três da manhã. O pecado original, portanto, é meu — e é delicioso.


2. O espeto, o churrasqueiro e Umberto Eco

Umberto Eco, sempre afiado, resmungou que a internet promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade (ECO, 2015). Pois bem: o idiota ganhou banda larga, prompt e servidor da OpenAI. Continuou idiota? Nem sempre. Às vezes ele formula uma pergunta que fere — e a IA devolve um espelho com cacos de Freud, Cioran e Nietzsche. O espeto (IA) não explica o churrasco; quem tempera sou eu.

3. Analfabetismo digital ou proletariado do clique?

O INAF 2024/2025 concluiu que apenas 23 % dos brasileiros dominam “altas habilidades digitais” (FUNDAÇÃO ITAÚ; AÇÃO EDUCATIVA, 2025). O Estadão retumbou: “Brasil tem déficit de cliques!” Mas ninguém notou que mesmo o jovem rotulado de “analfabeto digital” abastece plataformas com vídeos, fotos e dados — trabalho gratuito que enriquece Big Tech a juros compostos. O verdadeiro analfabetismo não é técnico; é político.


4. A geração canguru com Wi-Fi

Jean Twenge batizou a iGen (TWENGE, 2017): jovens que dirigem, trabalham e namoram cada vez mais tarde, instalados no quarto-acampamento com micro-ondas. No Brasil, o desemprego juvenil passa dos 18 % (IBGE, 2025) — qualquer passo fora do ninho custa caro. Resultado: aventura material rareia, pergunta existencial mingua, e o prompt se transforma em passaporte para uma “vida” que acontece só em texto.


5. O Teste de Turing às avessas

Há quem tema que a IA “passe no Teste de Turing”. Meu pânico é outro: que nós não passemos. Quando alguém exige que eu prove a “autenticidade” do meu artigo, devo responder como Foucault (1992): “O autor morreu; o que importa é a força do discurso.” Se o texto ressoa, pouco importa se nasceu de carne ou silício. A crítica que só checa pedigree foge do abismo real: nosso vício de respostas instantâneas e perguntas desidratadas.


6. A pergunta como último território de liberdade

Paulo Freire lembrava que o oprimido se liberta perguntando. Byung-Chul Han (2017) alerta que a sociedade do desempenho pune qualquer pausa reflexiva. Delegar a IA para garimpar citações não me estupra a criatividade; estupra-me, isso sim, a incapacidade de errar a pergunta. É no tropeço que se infiltra o desejo, diria Lacan. E desejo não se terceiriza.


7. Epílogo com ferrugem filosófica

Se amanhã abolirem todas as inteligências artificiais, restará a lenha de sempre: minha ignorância temperada de pretensão. Enquanto isso, eu sigo negociando com o algoritmo — não para terceirizar angústias, mas para tensioná-las. Quem sabe, entre um prompt e outro, eu aprenda a formular a pergunta que ainda não sei fazer: aquela que lateja quando as notificações calam.

Porque, no fim, a IA só revela meu próprio espelho: o idiota sou eu — mas agora eu me leio em alta resolução.


Referências:

BARTHES, Roland. A morte do autor. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BYUNG-CHUL HAN. A expulsão do Outro. Petrópolis: Vozes, 2017.

ECO, Umberto. Entrevista à ANSA sobre redes sociais. 10 jun. 2015.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992.

FUNDAÇÃO ITAÚ; AÇÃO EDUCATIVA.
Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) 2024/2025 – Habilidades Digitais. São Paulo, 2025.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de indicadores sociais. Rio de Janeiro, 2025.

TWENGE, Jean. iGen: Por que as crianças superconectadas de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes e completamente despreparadas para a vida adulta. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2019.

TURING, Alan. “Computing Machinery and Intelligence”. In: Mentes e Máquinas. São Paulo: Unesp, 2020.


José Antônio Lucindo da Silva | CRP 06/172551 | joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...