Presente pleno, desejo morto: quando viver o agora é só mais uma forma de morrer capitalizável
#maispertodaignorancia
Eu acordei com uma missão clara: esquecer quem eu fui, ignorar o que vivi e sorrir para o agora — de preferência em 1080p, com filtro de plenitude e um café coado sem traumas. Afinal, me disseram que o passado atrasa, que lembrar dói e que viver o agora é tendência. Não me explicaram, no entanto, que essa plenitude do presente vem com preço: o do apagamento simbólico, da memória, do desejo.
O Estado de Minas publicou recentemente um artigo com título quase terapêutico: “Conheça hábitos para esquecer o passado e começar a viver o agora de forma plena”. Como se a vida fosse uma planilha de Excel emocional, onde bastaria deletar células problemáticas para alcançar a fórmula da felicidade. Mas, como dizia Kierkegaard, a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás — e, irônico ou não, é para lá que a existência continua apontando.
Aliás, o desejo não habita o agora. O desejo tensiona. Ele incomoda, persiste, escapa das metas da semana e dos planners coloridos. A demanda, ao contrário, é palatável, mensurável e vendável. E como nossa sociedade gira a partir da lógica da demanda — e não mais do desejo —, somos convidados não a viver, mas a performar: sorrir no presente, mesmo que por dentro a alma grite “e o passado, porra?!”.
Freud ficaria perplexo com essa tentativa de reprimir o passado via aplicativo de hábitos. Lacan provavelmente ironizaria a proposta: “viver no presente” seria, no fundo, mais um significante à serviço do gozo capitalista. E Byung-Chul Han completaria o trio dizendo que o sujeito atual já não se relaciona com o outro, mas com uma versão pasteurizada de si mesmo, forjada para agradar o algoritmo.
Esquecer virou virtude. Lembrar é fracasso. Desejar é inadequado. E viver o agora se tornou uma espécie de doutrina espiritual higienizada, vendida em caixinhas de frases prontas no Instagram. Só que há um detalhe: esse presente é falso. Ele é construído sobre os escombros de passados não elaborados. E, sem elaboração, o presente vira um looping melancólico de repetições encenadas.
Se só é possível viver aquilo que foi vivido — e se o desejo precisa de espaço para emergir —, então talvez o maior ato subversivo seja justamente recusar o agora. Habitar a dor. Reencontrar o tempo. E deixar que a angústia faça seu trabalho.
Porque o agora não é plenitude. É ruína polida com cheiro de lavanda.
Referências :
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ESTADO DE MINAS. Conheça hábitos para esquecer o passado e começar viver o agora de forma plena. Disponível em: https://www.em.com.br/emfoco/2025/05/20/conheca-habitos-para-esquecer-o-passado-e-comecar-viver-o-agora-de-forma-plena/ . Acesso em: 22 maio 2025.
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