Resumo
Neste ensaio, tensiono o fetiche contemporâneo da “proficiência digital” exigida por empresas, escolas e políticas públicas no Brasil. Parto do relatório Inaf 2024/2025, que vibra de entusiasmo ao anunciar que apenas 23 % dos brasileiros teriam “altas habilidades digitais” . Aparentemente, bastaria treinar cliques para salvar a nação. Ao contrapor esse otimismo às condições materiais – fome, jornadas exaustivas, transporte precário – recorro a Bauman, Freud, Cioran, Byung‑Chul Han, Nietzsche, Harari e Ernest Becker. O resultado é um retrato desconfortável: a métrica que pretende incluir apenas legitima a exclusão, transformando a carência estrutural em culpa pessoal.
1 | A liquidez que apaga estômagos – Bauman
Para Bauman, quem não flutua na modernidade líquida é descartado. A régua agora é digital: se você não domina o formulário on‑line, evapora. A fome é rebatizada “baixo desempenho” e a precariedade, “falta de curso”.
2 | Superego SaaS – Freud
O velho superego ganhou upgrade na nuvem. Plataformas de RH exigem certificações em ritmo de sprint, enquanto o trabalhador luta para pagar o gás. Falhar virou pecado neoliberal: a culpa não é da estrutura, é sua – você “não se reinventou”.
3 | O desespero lúcido – Cioran
Cioran gargalharia: medimos cliques para maquiar o vazio. A métrica vende esperança, mas esperança é só anestesia elegante. O crash chega quando o boleto vence – e KPI nenhum o paga.
4 | Autoexploração festiva – Byung‑Chul Han
Na “sociedade do cansaço”, a exploração não é mais vertical; é selfie. O sujeito se chicoteia com micro‑vídeos, dashboards e cursos relâmpago porque “ama o que faz”. A positividade tóxica transforma opressão em autoajuda premium.
5 | Niilismo dashboard – Nietzsche
O dado matou Deus e pôs um gráfico no lugar. Métricas de RH viraram moral ascética: quem não performa é fraco. Nietzsche sugeriria quebrar o espelho de pixels e dançar sobre os cacos – mas cuidado, o algoritmo contabiliza passos.
6 | Dataísmo e invisíveis – Harari
Harari diagnostica o dataísmo: valor tem quem produz dados utilizáveis. O entregador de app gera GPS + tempo de entrega: utilidade alta. Já quem fica offline, cozinhando a própria dor, é ruído estatístico – descartável para o culto do número.
7 | Mentira caracteriológica – Ernest Becker
Por fim, Becker lembra: toda cultura é bunker contra a morte. A “proficiência digital” é armadura reluzente para negar a finitude. Melhor investir em planilhas que encarar o nada. O problema? Armaduras não alimentam, nem pagam aluguel.
Conclusão
O Inaf mede “habilidades” e celebra gráficos coloridos, mas ignora que dados não sentem fome. Exigir proficiência tecnológica de corpos exaustos é o novo eufemismo da desigualdade: uma crueldade algorítmica com verniz meritocrático. Se a política pública não encarar materialidade – renda, tempo, acesso real – continuará trocando pão por pixel e chamando isso de futuro.
Referências;
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BYUNG‑CHUL HAN. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal‑estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
INAF. Indicador de Alfabetismo Funcional 2024/2025. São Paulo: Ação Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2025.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
O ESTADO DE S. PAULO. Só um em cada quatro brasileiros tem altas habilidades digitais; entenda como isso foi medido. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 abr. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/.... Acesso em: 6 maio 2025.
Escrito por José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP 06/172551
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