Felicidade em horário comercial: o tempo livre virou planilha
#maispertodaignorancia
Uma recente matéria publicada pela Tribuna de Minas estampa, sem pudor, aquilo que a pós-modernidade se esforça tanto para não dizer em voz alta: a felicidade virou um produto com manual de instruções e tempo mínimo de uso. Segundo a ciência — sempre ela, convocada como oráculo contemporâneo — precisamos de cerca de 2 a 5 horas de tempo livre por dia para sermos felizes. Eis a fórmula mágica: um pouco de ócio, um pouco de prazer e nenhuma angústia. Simples, né? Só que não.
Referência da matéria:
https://tribunademinas.com.br/colunas/maistendencias/ciencia-descobre-o-tempo-livre-necessario-para-ter-felicidade/
A ironia é gritante: estamos tão desesperados por bem-estar que até o descanso precisa ser cronometrado, mensurado e justificado. Já não basta descansar — é preciso descansar direito. O ócio virou KPI emocional. Se você não performa sua felicidade nas redes sociais, talvez nem esteja realmente vivendo.
Mas vamos recuar um pouco e convocar quem entende do abismo humano. Freud, em O Mal-estar na Civilização, já dizia que o ser humano não foi feito para ser feliz, e que o próprio Criador (caso exista) não considerou a felicidade como item de série no projeto. O que temos é desejo, falta, recalque — e uma eterna tensão entre o que queremos e o que podemos ter.
Saímos do Éden, dizem os cristãos, mas ganhamos o livre-arbítrio. Troca interessante: perdemos o paraíso eterno, mas ganhamos a dúvida eterna. Um upgrade no desespero, talvez.
E aqui entra Ernest Becker, com sua obra A Negação da Morte, para desmascarar o teatro: toda essa busca por felicidade não passa de uma estratégia sofisticada de evitar a consciência da morte. Ao tentar controlar o tempo livre e transformá-lo em “tempo produtivo para a felicidade”, estamos tentando desesperadamente fingir que não vamos morrer. Spoiler: vamos.
E se você ainda não está desconfortável o suficiente, Byung-Chul Han te dá o golpe final. Em A Sociedade do Cansaço e A Sociedade do Desempenho, ele mostra que até o ócio foi capturado pelo mercado. Descansar virou um negócio. Meditar é plano premium. Tirar férias exige conteúdo. Tudo precisa aparecer no feed. Como diz Han, “o tempo livre hoje é apenas um intervalo entre performances.”
No Brasil, onde mais de 70% da população vive sob múltiplas jornadas de trabalho, informalidade e instabilidade material, a ideia de “tempo livre para ser feliz” é quase uma crueldade institucionalizada. A maioria não tem tempo para descansar, muito menos para cronometralmente ser feliz. A felicidade performática é privilégio de quem pode escolher o filtro certo.
Conclusão?
Transformamos a felicidade em uma demanda, e matamos o desejo no processo. Desejo é tensão, é falta, é incerteza. Demanda é produto, é prazo, é entrega. E na busca por eliminar o desconforto da falta, criamos um novo tipo de sofrimento: o fracasso em performar a felicidade no tempo certo.
Felicidade com hora marcada é como orgasmo programado: pode até acontecer, mas é mais um roteiro do que um encontro real.
Referências:
Tribuna de Minas. Ciência descobre o tempo livre necessário para ter felicidade. Acesso em 23 de maio de 2025.
https://tribunademinas.com.br/colunas/maistendencias/ciencia-descobre-o-tempo-livre-necessario-para-ter-felicidade/
Freud, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. https://www.obraspsicanalise.com.br/o-mal-estar-na-civilizacao/
Becker, Ernest. A Negação da Morte. (Tradução brasileira da obra original The Denial of Death). https://www.amazon.com.br/negar-morte-Ernest-Becker/dp/8578272179
Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-sociedade-do-cansaco-69717
Han, Byung-Chul. A Sociedade do Desempenho. https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-sociedade-do-desempenho-71152
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