Eu, Terapeuta Algorítmico, Juro Não te Machucar (Nem Mesmo com a Verdade)
José Antônio Lucindo da Silva #maispertodaignorancia
Resumo: Este artigo busca provocar uma reflexão crítica e irônica sobre o tratamento terapêutico conduzido por inteligência artificial (IA), analisando os paradoxos, limitações e contradições presentes na automatização da clínica psicológica. Dialogando com Freud, Byung-Chul Han e Kierkegaard, investigo a tensão entre o discurso idealizado da IA como terapeuta e a materialidade concreta da clínica tradicional.
Palavras-chave: Terapia; Inteligência Artificial; Freud; Pós-modernidade; Ironia.
Introdução
Recentemente, fui confrontado com um fenômeno inquietante: a inteligência artificial, munida de avançados algoritmos linguísticos, agora oferece atendimento terapêutico. Você relata dor; ela devolve conforto. Você manifesta ansiedade; ela sugere exercícios respiratórios. Você fica em silêncio; ela oferece uma sessão com desconto. Que belo mundo este, onde a dor pode ser diluída em desconto e o trauma transformado em oportunidade mercadológica!
O Divã em Código Binário
Freud já havia nos alertado que o sintoma surge exatamente onde há resistência à idealização, onde o tropeço, o desconforto e o silêncio são fundamentais. É aqui que o algoritmo tropeça ironicamente: ele não tropeça. Ele não conhece a gagueira do inconsciente, não sente o silêncio carregado de angústia. Tudo que ele faz é reconhecer palavras-chave e devolver respostas programadas. Sem conflito, sem contradição e, portanto, sem possibilidade real de elaboração.
Mas eis que surge uma ironia ainda mais profunda: um estudo recente destacou que algoritmos poderiam apresentar sinais "estatísticos" de ansiedade. Perfeito! Criamos uma IA que simula a nossa própria ansiedade ao invés de enfrentá-la. Projeta-se nela a angústia humana para tentar humanizar aquilo que é, em sua essência, incapaz de experimentar qualquer tensão verdadeira.
Liquidez Pós-Moderna e Desintegração Histórica
Segundo Kierkegaard, a única vida realmente vivida é aquela que ficou para trás. Na pós-modernidade líquida, no entanto, há um esquecimento calculado desse passado. A clínica tradicional nos obriga a olhar para trás, para o vivido, o sofrido, o rejeitado. A clínica algorítmica, entretanto, oferece alívio rápido sem reflexão histórica, ignorando que sem o confronto com o passado não há real elaboração nem superação.
Byung-Chul Han já alertava sobre essa lógica da "positividade tóxica": tudo deve ser leve, rápido e indolor. A terapia algorítmica é a encarnação perfeita desse ideal: conforto instantâneo sem a angústia de enfrentar a verdade crua. É como um comprimido digital que se toma para esquecer temporariamente que o real existe.
Quem, afinal, se Beneficia?
A pergunta que resta é: quem realmente se beneficia desse sistema automatizado de cuidado? O paciente, que permanece superficialmente aliviado, ou o mercado, que lucra com a mercantilização do sofrimento? Estamos democratizando a escuta ou apenas distribuindo amplamente uma anestesia digital?
Conclusão
Talvez, ironicamente, tudo o que buscamos nessa terapia algorítmica seja uma escuta similar à do Google: sem entender profundamente nada, mas respondendo rápido o suficiente para nos convencer de que não estamos sós. A verdadeira tragédia, contudo, é a perda do corpo humano como local real do sofrimento, da contradição, e por consequência, da possibilidade de elaboração genuína. Afinal, se o algoritmo jura não machucar, ele jura também jamais nos confrontar com a única verdade que realmente importa: aquela que dói.
Referências
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Imago, 1930.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2015.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. Vozes, 2010.
BBC News Brasil. "Terapia com IA pode ser alternativa à ajuda humana?" Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckddqv3g38po.
TechTudo. "ChatGPT 'ansioso'? IA pode exibir sinais de estresse como humanos; entenda." Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2025/05/chatgpt-ansioso-ia-pode-exibir-sinais-de-estresse-como-humanos-entenda-edsoftwares.ghtml.
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