confesso que performo, logo existo?”
#maispertodaignorancia
Desperto, abro o feed e reconheço meu reflexo pixelado: um eu de retalhos, costurado por curtidas, que precisa falar antes mesmo de pensar — ou evapora. A reportagem da VEJA sobre os “superdisseminadores de bobagens” espelha meu cotidiano como num confessionário às avessas: se Malcolm Gladwell celebrava a virada virtuosa que limpa vagões, hoje limpamos apenas o algoritmo para que ele brilhe e venda mais um minuto da nossa atenção. Na prática, trocamos a locomotiva urbana pela maria-fumaça do engajamento: muita fumaça, quase nenhum trilho.
Byung-Chul Han não parece surpreso. Em A crise da narração, ele decreta que o storytelling virou storyselling; narrativa morreu de overdose de impulso e ressuscitou como banner clicável. Quando a fala deixa de reunir começo, meio e fim, resta-me o eterno presente da notificação, onde só cabe a citação isolada, a dança de sete segundos, o “responde aí nos comentários”. Nessa planície sem memória, tento consolidar um “eu” que, como argamassa, usa apenas dados de engajamento. Sobra performatividade; falta densidade.
Foi então que convidei Santo Agostinho para atravessar a tela. Sim, 1 600 anos nos separam, mas ele já descrevia — com latim afiado — a mesma fome que hoje disfarço de curiosidade. No Livro X das Confissões, Agostinho chama de concupiscentia oculorum esse desejo de ver qualquer espetáculo “maravilhoso”, mesmo o hediondo, sem propósito além do fascínio vazio. Traduzo: doomscrolling. Ele confessava vergonha por amar o aplauso; eu posto carrossel motivacional porque o silêncio não ranqueia.
O que me espanta é a reviravolta: a confessio agostiniana buscava o antídoto da vaidade no reconhecimento da própria falha. Eu, influencer amador da minha timeline, confesso pública e metodicamente para reforçar a marca — minha ferida vira “case de autenticidade”, meu tropeço rende Reels com trilha triste e cupom de terapia on-line. O santo ajoelha-se para sair de si; eu ajoelho-me diante do ring-light para caber em mim mesmo, deste tamanho de tela.
E Freud? Ele já lembrara que o sintoma devolve aquilo que recalquei. Eu, sujeito supostamente esclarecido, transformo o sintoma em assinatura: “insônia empreendedora”, “burnout criativo”, “ansiedade que dá engajamento”. O sofrimento agora monetiza — e faz fila de patrocinador. Cioran riria do abismo: “Nada mais sólido que a própria inconsistência.” Talvez por isso eu insista em atualizar meus medos nos stories; sem esse ritual, evaporo junto com a bolha colorida que circunda meu avatar.
Só que algo range. Quando escuto Agostinho lamentar que seus discursos juvenis eram “fumaça e vento”, percebo o eco no meu roteiro de conteúdo: publico, otimizo, mensuro, e ainda assim resta a sensação de que não contei nada. A cada vídeo “definitivo” sobre propósito, preciso gravar outro — definitivo de novo — porque a plateia já passou de fase. Han, impiedoso, sussurra que vivo num ecossistema de positividade excessiva, onde nenhuma história pode amadurecer: se ela dura mais que quinze segundos, o dedo desliza. Resultado: empilho fragmentos até parecer inteiro, mas nenhum pedaço se encaixa.
Há saída? Agostinho aponta um caminho insólito: calar para ouvir o rumor interno — esse que não gera views. Em vez de call to action, um call to silence. Contudo, o mercado não recompensa lacunas; minha régua são números, não metánoia. Ainda assim, experimento o risco: deixo-me offline por um dia inteiro, apenas para sentir o diabo da abstinência dopamínica — e noto o vazio que Han denuncia: quando o enredo falha, o sujeito se desfaz.
Concluo, então, minha pequena heresia: o influencer de 2025 só consolidará algum “eu” se aceitar a mesma operação paradoxal de Agostinho — mas com o sinal invertido. Não basta confessar; é preciso confessar o fracasso da própria confissão-produto. Transformar a falha em ponto final, não em gancho de engajamento. Talvez meu próximo vídeo comece assim: “Não tenho nada para vender hoje.” Pode soar suicídio algorítmico, mas quem sabe devolva ao discurso seu peso específico — aquele que Freud chamava de elaboração, Agostinho de louvor, Han de narrativa substancial.
Enquanto não encontro coragem, continuo aqui: editando cortes, afinando gancho, lucrando migalhas de atenção que evaporam mais rápido que a fumaça do incenso medieval. No fundo, confesso: meu maior medo não é o hate, é o silêncio absoluto. O santo teria compassão; o algoritmo, não. E eu? Eu sigo balançando entre ring-light e vela votiva, tentando descobrir se ainda existe história possível entre a faísca que começa o Reel e o cinza que sobra depois do swipe-up.
Ai de mim se não performo — e ai de mim se performo demais.
Referências
GIANNINI, Alessandro. “O avesso do avesso: os estragos provocados pela disseminação de bobagens na era dos influencers.” VEJA, 18 maio 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/comportamento/o-avesso-do-avesso-os-estragos-provocados-pela-disseminacao-de-bobagens-na-era-dos-influencers/
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis: Editora Vozes, 2023. Sinopse em: https://www.livrariavozes.com.br/acrisedanarracao8532665691/p
ITS Rio. “Seis pontos sobre A crise da narração, de Byung-Chul Han.” 2024. Disponível em: https://itsrio.org/pt/artigos/seis-pontos-sobre-a-crise-da-narracao-de-byung-chul-han/
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. Informações gerais em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Confiss%C3%B5es
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
A palavra "votiva" vem de "voto" no sentido antigo de promessa ou oferenda feita a uma divindade.
Assim, algo "votivo" ou "votiva" é aquilo que se oferece em cumprimento de uma promessa religiosa. Por exemplo:
Vela votiva: vela acesa como parte de uma promessa, oração ou agradecimento a um santo ou divindade.
Oferenda votiva: objeto deixado em um altar ou santuário como forma de devoção.
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