Entre o feed e o fim: por que narrar já não nos salva (mas morrer ainda funciona)
#maispertodaignorancia
Eu escrevo no singular — mas que sujeito, afinal, ainda cabe nessa primeira pessoa? No Brasil de hoje, onde pouco mais de 27 % da população sabe manejar o labirinto digital, o “eu” virou efeito especial de um palco que só a minoria ilumina. O resto é plateia estatística: assiste, sofre, mas não edita o roteiro.
1. Narração-vitrine
Walter Benjamin choraria pixels: a narrativa que unia pessoas ao redor do fogo foi trocada por um ring-light que lança sombras sobre quem não tem Wi-Fi. Histórias já não criam comunidade; criam funnel. O herói da jornada agora vende mentoria em doze vezes sem juros.
2. Especialista-influencer & o politicamente (in)correto
O saber técnico virou merchandising de si mesmo. Se o algoritmo premia repetições confortáveis e pune dissonâncias, o “especialista” aprende a sorrir para o feed enquanto mutila a própria crítica. Contradição? Item fora de catálogo.
3. Diálogo esvaziado
Kierkegaard avisou: verdade vivida é a que ficou para trás. Mas, na cronologia do scroll, passado é peso morto; futuro, bug-fix. O presente infinito exige certezas rápidas — nunca angústia, que demora. Resultado: trocamos o diálogo (tensão entre polos) por monólogos encenados para a claque de curtidas.
4. Falso self hipertrofiado
Winnicott, se logasse num story, diagnosticaria: avatar obeso, sujeito anoréxico. A vitrine exige performance ininterrupta; ansiedade, bullying e depressão são apenas side-effects de um eu que precisa de novas máscaras antes que o algoritmo mude de humor.
5. Cronometria do Imediato
George Orwell imaginou apagar o passado; o 5G preferiu saturá-lo de ruído. Sem tempo de elaboração, não há memória que pese nem projeto que vingue. O feed é um presente perpétuo que some na velocidade do refresh.
6. Morte: o último rito offline
Num universo de stories infinitos, só a morte continua a dizer: “próxima foto não há”. Sofrimento fala mais de nós que qualquer filtro, mas o mercado prefere felicidade plug-and-play. Entre o “viva como se fosse o último dia” e o kit autotune do luto, tentamos esquecer que último dia é data certa — embora fora do calendário do engajamento.
7. Esperança como paixão triste
A empatia de feed verniza a miséria com hashtags solidárias. Shoshana Zuboff chamaria isso de capitalismo de vigilância sentimental; Cioran, de luxo cínico. Esperança? Só se vier parcelada, porque a angústia, vertigem sem ROI, não monetiza.
Brecha (ou ironia final)
Se toda narrativa virou vitrine e todo silêncio, algoritmo, o único gesto subversivo talvez seja devolver espessura ao tempo — marcar rituais que não cabem no KPI da felicidade. Um diário analógico, uma roda de conversa sem gravação, uma clínica que escute a angústia antes que ela vire post motivacional. Tão mínimo que soa ridículo. Tão brutal que talvez baste.
Porque, como Marx nos lembra, os meios de produção moldam o pensamento; mas, como Freud insiste, o sintoma sempre fura o discurso. E, no furo, há ainda uma história a ser contada — sem patrocínio, sem avatar, mas com a verdade simples e crua de que somos finitos.
Se isso não render curtidas, ao menos rende biografia.
Referências:
ADKINS, Barry. A arte de contar histórias (tradução livre). São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 197-221.
BYUNG-CHUL HAN. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2023.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1929). Rio de Janeiro: Imago, 1997.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2018.
MARX, Karl. O capital. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
WINNICOTT, Donald. O verdadeiro e o falso self. In: ____. O ambiente e os processos de amadurecimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
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