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Entre o Eu, o Algoritmo e a Morte: ensaio sobre a não-narrativa do sujeito digital



Entre o Eu, o Algoritmo e a Morte: ensaio sobre a não-narrativa do sujeito digital

#maispertodaignorancia

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o colapso da subjetividade na contemporaneidade, tendo como eixo central a tensão entre o "eu" performático das redes digitais, o poder algorítmico de vigilância e predição, e a negação simbólica da morte. Partindo das obras de Byung-Chul Han, Elisabeth Roudinesco, Shoshana Zuboff, Cathy O'Neil e Ernest Becker, problematiza-se a condição do sujeito como produto de dados, a substituição da escuta simbólica por modelos preditivos e a mercantilização do trauma e do desejo. O artigo, em tom irônico e reflexivo, tensiona a ilusão de soberania identitária com a inevitável finitude que a cultura contemporânea insiste em ignorar.

Palavras-chave: subjetividade; algoritmos; identidade; vigilância; morte; discurso digital.

1. Introdução O que resta do sujeito quando até seu sofrimento pode ser convertido em métrica de engajamento? Se outrora o inconsciente falava no divã, hoje ele parece carregar Wi-Fi. Este ensaio busca justamente cruzar os fios expostos do "eu digitalizado", onde a escuta analítica cede lugar ao processamento estatístico e a dor se transforma em input para machine learning.

2. O eu soberano e o colapso da alteridade Elisabeth Roudinesco (2021) alerta que o sujeito contemporâneo, ao tentar se tornar soberano de si, dissolve a alteridade necessária para existir simbolicamente. O "eu" torna-se projeto de marketing, fixado em identidades que circulam mais como logomarcas do que como trajetórias de subjetivação. A clínica da escuta é trocada pela performance do pertencimento.

3. A narrativa como ruína: entre Han e o feed Byung-Chul Han (2023) denuncia o fim da narração como espaço simbólico. Vivemos sob a ditadura da transparência, onde não há mais tempo para elaborar, apenas para publicar. O sujeito já não fala — ele posta. E nesse regime de positividade, o silêncio que sustentava a elaboração psíquica torna-se erro de carregamento.

4. O algoritmo como novo superego: Zuboff e o capitalismo de vigilância Zuboff (2021) introduz o conceito de capitalismo de vigilância, no qual dados subjetivos são expropriados para alimentar sistemas que visam prever e moldar comportamentos. A subjetividade torna-se funcional: o desejo, indexável; a tristeza, mensurável; o luto, monetizável. A IA terapêutica, nesse contexto, não escuta: ela coleta.

5. O algoritmo que destrói: o eu como dado de risco Cathy O'Neil (2018) aprofunda esse cenário ao mostrar que os algoritmos, longe de neutros, produzem exclusões e classificações violentas. São "modelos de destruição em massa" justamente porque operam sem diálogo, sem narrativa, sem contexto — e com muito poder. O sujeito, aqui, não é mais alguém: é uma estatística de risco.

6. A morte como dado negado: Becker e o fim da elaboração Ernest Becker (1973) articula que toda cultura serve, em alguma medida, para negar a morte. Na sociedade digital, essa negação assume formas ainda mais sofisticadas: avatares eternos, legados digitais, inteligências artificiais que "mantêm vivo" o que já morreu. A morte, porém, continua ali — como dado não processável. E é justamente sua presença que desestabiliza o discurso do eu soberano e do algoritmo onisciente.

7. Considerações finais Não é a IA que ameaça o humano, mas a tentativa desesperada do humano de deixar de ser sujeito para se tornar dado. A clínica, nesse cenário, talvez seja o último bastião de resistência simbólica. E a morte, sua guardiã mais fiel.

Referências 

BECKER, Ernest. A negação da morte. São Paulo: Record, 1973. HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2023. O'NEIL, Cathy. 

Algoritmos de destruição em massa. São Paulo: Intrínseca, 2018. ROUDINESCO, Elisabeth. 

O eu soberano. São Paulo: Ubu, 2021. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.


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