Doce de leite & fel de algoritmo: autobiografia apócrifa de um indignado em alta definição
#maispertodaignorancia
Eu confesso: não foi o preço que me feriu, foi o centavo simbólico que atravessou minha aura gourmetizada de virtude. Bastava chamar o PROCON, mas preferi virar mártir em 1080 p: publiquei a indignação, ganhei curtidas, perdi o fio. Ressentimento em potes de 250 g — zero lactose, zero pudor.
A timeline, claro, agradeceu. Transformou meu pequeno espirro econômico numa tempestade moral: o gerente virou anticristo; eu, santo em standby; o público, juízes terceirizados por salário emocional. Nietzsche piscou do túmulo e sussurrou: “Bem-vindo à fábrica de virtudes ressentidas — pague com seu like.” Fiz fila.
Eis a ironia: reclamei do Diabo da internet vestindo batina de Wi-Fi. Agostinho diria “Não te disperses lá fora”, mas o feed é mais quente que o deserto de Davi. Aqui, cada pixel de indignação rende juros compostos em dopamina. Quanto vale a alma? A cotação varia conforme o engajamento.
Entre um scroll e outro percebo que Bauman estava certo: líquido é meu caráter quando escorre pelo dedo que arrasta a tela. Nada fixa, tudo monetiza. Até minha promessa dramática de “desistir” já nasce coreografada para reels de compaixão — spoiler: não vou desaparecer; meu algoritmo tem boletos.
O preço justo? Virou McGuffin. A verdadeira mercadoria sou eu, narrador on-line em crise, revendendo emoção pronta-entrega. Enquanto isso, guerras, secas e famintos disputam migalhas de pixels porque não cabem nos 15 segundos regulamentares do entretenimento moral.
Resta-me a penitência impossível: silenciar. Só que o silêncio não gera push notification. Na dúvida, faço o que toda figura pública de nosso tempo faz: peço desculpas públicas pelo barulho que eu mesmo amplifiquei — e aguardo o próximo gatilho que me devolva à vitrine de ofensas fresquinhas.
Amém? Talvez. “Like” é a nova bênção; “cancelamento”, a excomunhão. Eu sigo rezando para que um dia o doce de leite volte a ser só doce de leite. Até lá, continuarei entornando ressentimento light, agora com nova embalagem sustentável: cabe no seu bolso, pesa no meu feed.
Referências:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos. São Paulo: Paulus, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis: Vozes, 2023.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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