Do Swipe ao Sintoma: por que chamar 77 % de “analfabetos digitais” é o espantalho perfeito
Olá, eu sou José Antônio Lucindo da Silva — e, no Mais Perto da Ignorância, duvido antes de deslizar. Prometeram‑nos um futuro de competências digitais, mas o que entregaram foi um diagnóstico apressado: se não acerta 10 de 14 cliques, você entrou para o clube dos “analfabetos”. Respire fundo; talvez o problema não esteja no seu polegar.
1 | O número que vibra, mas não explica
A manchete é sedutora: “Só um em cada quatro brasileiros tem altas habilidades digitais” (ESTADÃO, 2025). A fonte? O INAF, que desde 2001 mede analfabetismo funcional e agora incluiu três micro‑tarefas digitais: comprar tênis on‑line, inscrever‑se num evento, escolher um documentário num streaming e justificar a escolha no WhatsApp.
Pergunta que não cala: quem definiu que essas tarefas equivalem a “pleno desenvolvimento cidadão” numa economia de dados?
2 | Do clique ao recalque: Freud atravessa a timeline
No teste, a maioria tropeçou ao explicar por escrito o motivo da escolha do filme. Não é falha de dedo; é déficit de letramento. Freud chamaria de curto‑circuito no espaço de elaboração: o sujeito acessa a plataforma (princípio do prazer), mas não consegue transformar informação em argumento (princípio da realidade). A selfie vence o texto.
3 | Sociedade do cansaço: excesso que esvazia
Byung‑Chul Han denunciou a positividade tóxica da alta performance: corremos tanto que deixamos o desejo para trás. A estatística do INAF confirma essa exaustão cognitiva: conectados, porém descrentes no ato de pensar. Sem tempo de frustração não há aprendizado — só reatividade.
4 | Mercado 4.0, RH 5.0, cérebro paleolítico
Os RHs já pedem “fluência em IA” como se o ChatGPT tivesse nascido junto com o alfabeto. Harari alerta para a iminente “classe inútil”: gente deslocada porque não alimenta a máquina de dados. O rótulo “analfabeto digital” cumpre bem esse papel de seleção: desloca a falha estrutural (escola precária, banda larga desigual) para o indivíduo.
5 | O que realmente falta? Tempo e política de silêncio
- Ler devagar — textos longos, livros inteiros, não apenas notificações.
- Escrever e reescrever — justificar escolhas como no teste do INAF, mas com tutoria humana, não com emoji de aprovação instantânea.
- Errar e voltar — reinstalar a frustração que Freud dizia ser combustível de cultura.
Sem isso, colecionaremos certificados “ágeis” enquanto a insegurança epistemológica explode em ansiedade digital.
6 | Conclusão: o espantalho e o espelho
Rotular 77 % dos brasileiros de “analfabetos digitais” é eficaz para vender cursos‑relâmpago, mas inútil para construir cidadania. A verdadeira exclusão continua ancorada em séculos de escola esvaziada, bibliotecas trancadas e políticas que confundem acesso com competência. Enquanto não devolvermos tempo à mente — tempo de dúvida, pausa e elaboração — continuaremos a deslizar telas, sem tocar a experiência que vibra fora do feed.
Referências (em português)
- AÇÃO EDUCATIVA; CONHECIMENTO SOCIAL; FUNDAÇÃO ITAÚ. Indicador de Alfabetismo Funcional 2025 – Relatório Sintético. São Paulo, 2025.
- ESTADÃO. Só um em cada 4 brasileiros tem altas habilidades digitais; entenda como isso foi medido. São Paulo, 5 maio 2025.
- FREUD, Sigmund. O mal‑estar na civilização. Trad. José Paulo Netto. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2010.
- HAN, Byung‑Chul. A sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
- HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Trad. Janaína Marcoantonio. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
- IBGE. PNAD Contínua TIC 2023: Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular. Rio de Janeiro, 2024.
- UNESCO. Competências Digitais para Inclusão na América Latina. Brasília, 2024.
- WEF – Fórum Econômico Mundial. O Futuro dos Empregos 2025 – Edição em Português. Genebra, 2021.
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP 06/172551
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