#maispertodaignorancia
Dizem que vivemos na era da democracia plena. Que agora todos têm voz, todos opinam, todos se expressam. A questão é: o que exatamente significa essa democracia discursiva que virou sinônimo de comentar, postar, reagir? Talvez devêssemos nos perguntar se a democracia de hoje não é apenas o novo papel-moeda da política: flutuante, especulativa, sem lastro na materialidade do real.
Assim como o dinheiro deixou de representar algo concreto e virou uma abstração — criptomoeda, crédito, NFT, promissória digital — a democracia virou algo que se consome em doses de comentários e curtidas. Participar do debate público se tornou uma experiência estética, não uma ação política. Afinal, “deu sua opinião”? Pronto, você exerceu sua cidadania.
Umberto Eco já nos alertava: “As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.” E não se tratava de elitismo, mas de crítica à dissolução dos critérios que distinguiam o saber da opinião, o discurso do ruído. Hoje, tudo é ruído — e todos são livres para fazer parte dele. E se todos têm voz, quem escuta?
Como já antecipava Zygmunt Bauman (2001), estamos numa modernidade líquida, onde até a democracia escorre pelos dedos. Ela não exige mais sujeitos políticos — exige usuários ativos, de preferência engajados e facilmente manipuláveis. O cidadão vira avatar e o voto vira clique.
Byung-Chul Han (2018), por sua vez, aponta que vivemos a era da "sociedade da transparência", onde o excesso de positividade esvazia o negativo. E o que é a crítica senão o negativo da democracia? Ora, se criticar virou apenas mais um dado de engajamento, não há mais negatividade que confronte a estrutura. Há só conteúdo.
E eis o paradoxo central: a democracia, em nome da pluralidade absoluta, dissolve sua própria legitimidade. Ao permitir que tudo seja dito por todos, ao mesmo tempo, em todos os lugares, ela se torna apenas um fluxo de discursos autovalidados, muitas vezes guiados por algoritmos, bolhas e afetos instantâneos.
E no fim das contas, a democracia, como o dinheiro, passou a ser um fetiche — no sentido marxista da coisa: um objeto que encobre a sua própria origem e função. Ninguém pergunta mais de onde ela vem, quem a sustenta, como ela se organiza na vida concreta. O importante é ter “direito à fala”, mesmo que não haja mais escuta, nem espaço para o dissenso verdadeiro.
Democracia virou produto simbólico, moeda de troca para validar discursos, um ícone do capital cognitivo. E como todo produto de mercado, corre o risco de ser descartado assim que perde seu apelo.
Eu, sinceramente, já não sei se estamos defendendo a democracia — ou se apenas estamos consumindo sua embalagem.
Referências
- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
- ECO, Umberto. Número zero. Rio de Janeiro: Record, 2015.
- HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2018.
- MARX, Karl. O capital – Crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
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