Avançar para o conteúdo principal

De Marx à Selfie Revolucionária: notas (ironicamente) materialistas sobre o retorno de O Capital às prateleiras instagramáveis


De Marx à Selfie Revolucionária: notas (ironicamente) materialistas sobre o retorno de O Capital às prateleiras instagramáveis

Resumo

Assisto, entre um turno na metalurgia e uma rolagem de feed, ao relançamento cintilante de O Capital. Uso este artigo-confissão para tensionar, em primeira pessoa, a contradição entre o materialismo histórico de Marx e a lógica mediática que transforma crítica em commodity. Ancorado em Byung-Chul Han, Bauman e Debord, argumento que a crise da narrativa expulsa o conflito do espaço público, convertendo a luta de classes em performance curável por engajamento. Concluo que, sem recuperar a vivência concreta do trabalho, Marx continuará circulando como filtro vintage – útil para fotos de estante, inútil para revoluções de chão de fábrica.

Palavras-chave: Marx; materialismo histórico; crise da narrativa; consumo cultural; ironia crítica.


1 | Introdução

Confesso: comprei a nova edição de O Capital (MARX, 2013) porque a lombada combina com meu cinza grafite existencial. Eis aqui minha culpa burguesa impressa em papel offset premium – prova de que o fetiche da mercadoria sobrevive até mesmo na biblioteca do aspirante a crítico. A manchete do O Globo garantiu: “o espectro de Marx ainda nos ronda” (RANGEL, 2025). Ronda, sim, mas agora carrega código de barras e cupom de 10 % no carrinho.

2 | Marx e a alergia ao gabinete estéril

Marx desconfiava dos “teóricos de gabinete” que contemplam o mundo sem sujar as mãos (MARX; ENGELS, 2007). Eu, elegante representante do proletariado com plano de dados ilimitado, convivo com seus herdeiros 5G: especialistas que publicam threads inflamadas no X enquanto terceirizam a limpeza doméstica pelo aplicativo. O materialismo histórico exigia vivência; o capitalismo de influência exige unboxing.

3 | Crise da narrativa e anestesia do conflito

Byung-Chul Han diagnostica a crise da narrativa: perdemos a capacidade de escuta profunda, substituída por flashes de autoexposição (HAN, 2022). O negativo foi higienizado; o algoritmo prefere o like ao litígio. Se, para Marx, a história avança pelo choque irreconciliável das classes (MARX, 2013), para a minha timeline tudo precisa caber em 60 segundos e dois emojis. Resultado: o conflito vira ruído “tóxico” a ser silenciado em nome da boa convivência com anúncios segmentados.

4 | Bauman, Debord e o merchandising da crítica

Bauman (2001) já advertia que tudo se liquefaz; Debord (2018) acrescentou que o espetáculo devora seu conteúdo. Não surpreende, portanto, que O Capital ressurja como lifestyle intelectual. O mercado não teme Marx – ele o monetiza. Basta ver influenciadores vendendo “mentorias dialéticas” para gerentes de startups: a revolução, agora, em 12x sem juros.

5 | Materialidade, consumo e o eu curável

Eu mesmo noto que, quanto mais real é o suor na fábrica, mais distante parece a tal “transformação social” prometida pela estante cool. Marx insistiria: “a vida determina a consciência” (MARX, 2013, p. 130). Contudo, a vida foi precarizada e parcelada; a consciência, gamificada. Sem experimentar a dor do trabalho alienado, a leitura torna-se selfie moral – anestesia de classe média culpada, não motor de mudança.

6 | Considerações finais (sem fatalismo, com ironia)

Não anuncio o fim da história nem chamo às armas em CAPS LOCK. Constato, ironicamente, que a revolução material continua possível – mas exige reaprender a falar desde a carne, não só desde o feed. Enquanto isso, exibo meu Marx de capa dura ao lado da caneca “dialética lover” e sorrio: o espectro do comunismo virou item de decoração, e eu sigo apertando parafusos horas extras para pagar o frete.



Referências:


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2018.


HAN, Byung-Chul. A crise da narrativa. Petrópolis: Vozes, 2022.


HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2021.


MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.


MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.


RANGEL, Juliana. O capital volta às livrarias e prova que o espectro de Marx ainda nos ronda. O Globo, Rio de Janeiro, 28 maio 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/05/28/o-capital-volta-as-livrarias-e-prova-que-o-espectro-de-marx-ainda-nos-ronda-entenda.ghtml. Acesso em: 30 maio 2025.



#maispertodaignorancia



Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...