Clique, logo não existo: confissões (irônicas) de um analfabeto digital com PhD em boletos

Resumo — Descobri que pertenço aos 77 % de brasileiros que não acertam 10 de 14 cliques do novo teste do Inaf. Não sei se rio ou peço demissão preventiva. Neste artigo, comparo manchetes, relatórios e gurus da produtividade para mostrar que a “proficiência digital” virou o espantalho perfeito de um mercado que terceiriza seu fracasso às minhas falanges cansadas. Recorro a Bauman, Freud, Cioran, Byung‑Chul Han, Nietzsche, Harari e Becker para provar que, enquanto a planilha vibra em 5G, o estômago ainda trabalha em edge.

1 | O número que vibra, mas não explica

Só 23 % dos brasileiros de 15 a 64 anos possuem “altas habilidades digitais”, cravou o Estadão ao repercutir o Inaf 2024/2025 . A amostra testou três tarefas: comprar tênis on‑line, inscrever‑se num evento, escolher um documentário e justificar no WhatsApp; eis o novo Graal da cidadania algorítmica . O charme do número ofusca outro dado menos instagramável: quase 1 em 3 continua analfabeto funcional desde 2018 .

2 | Leitura, escrita, matemática… e taxa de entrega

Eduardo Saron, da Fundação Itaú, resume o drama: só 10 % da população domina leitura, escrita e matemática . Mesmo assim, RHs já pedem “fluência em IA” como se o ChatGPT fizesse parte do alfabeto . O Fórum Econômico Mundial garante 78 milhões de vagas se eu me “requalificar” rápido ; o detalhe é que 95 % dos analfabetos nem conseguem scrollar o app direito .

3 | Bauman segura o Wi‑Fi, Freud reclama do ping

Bauman diria que quem não flutua na modernidade líquida vira depósito de erro 404. O formulário on‑line substituiu o velho guichê; se eu travo na etapa “anexar currículo”, evaporo . Freud chamaria meu travamento de curto‑circuito entre princípio do prazer (comprar o tênis) e princípio da realidade (explicar por quê) – tarefa em que só 9 % dos “alfabetizados altos” teve sucesso .

4 | Cansaço, selfie e KPI: Byung‑Chul Han fez a thread

Han vê uma sociedade onde a exploração é voluntária e positiva: eu pago pelo curso que me explora e ainda posto certificado com filtro sépia. Enquanto isso, o IBGE informa que 92,5 % dos domicílios têm Internet ; pena que o pacote de dados acaba antes do vídeo‑aula de “Excel Ninja”.

5 | Cioran e Nietzsche nos bastidores do dashboard

Cioran gargalha: medimos cliques para ornamentar o vazio. Nietzsche, mais cruel, diz que substituímos Deus por gráfico de funil; quem não performa é fraco e merece o limbo do Wi‑Fi público.

6 | Harari e o culto do dado, Becker e a mentira final

Para Harari, só vale quem gera dados úteis; quem está offline é ruído . Becker lembra que, no fundo, colecionamos badges para negar a morte. Mas planilha não alimenta: 72,5 milhões de lares on‑line não garantem janta nas panelas .

7 | Conclusão: o espantalho e o espelho

Rotular 77 % como “analfabetos digitais” é ótimo para vender cursos‑relâmpago, péssimo para construir cidadania. Enquanto banda larga e tempo livre continuarem privilégio, trocaremos pão por pixel e chamaremos isso de futuro.

Referências:

AIBÉL, Agência Brasil. Três em cada 10 brasileiros são analfabetos funcionais. 05 maio 2025.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

BYUNG‑CHUL HAN. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.

CNN BRASIL. 95% dos analfabetos têm dificuldade para realizar tarefas pelo celular. 06 maio 2025.

ESTADÃO. Só um em cada quatro brasileiros tem altas habilidades digitais; entenda como isso foi medido. 05 maio 2025.

FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. O Futuro dos Empregos 2025 – edição em português. Genebra, 2025.

FREUD, Sigmund. O mal‑estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

IBGE. PNAD Contínua TIC 2023: acesso à internet e televisão. 2024.

INAF. Indicador de Alfabetismo Funcional 2024/2025 – Relatório Sintético. São Paulo, 2025.

UNICEF. Analfabetismo funcional não apresenta melhora e alcança 29% dos brasileiros. 05 maio 2025.

Escrito por José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP 06/172551

Canal no YouTube: @maispertodaignorancia

#maispertodaignorancia

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

Mais Perto Da ignorância

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Mais Perto Da ignorância

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Mais Perto Da ignorância

Mais perto da Ignorancia

Pesquisar neste blogue