Avançar para o conteúdo principal

Aprender a não aprender: o algoritmo como babá e a infância como campo de teste emocional



 Aprender a não aprender: o algoritmo como babá e a infância como campo de teste emocional

#maispertodaignorancia

Hoje acordei com a sensação de que estamos ensinando tudo — menos a aprender. Acordei e vi uma criança desbloquear um celular com mais agilidade que um adulto redigir um argumento. Vi pais orgulhosos postando “olha só como ele já mexe no YouTube”, como se a habilidade para o clique fosse sinônimo de cognição. Como se aprender fosse entreter.
A matéria do Portal Raízes me cutucou: países que sabem que aprendizagem não é distração estão colocando freios — e não fones — nas infâncias. E enquanto isso, por aqui, seguimos entregando o cérebro infantil ao algoritmo, embalado com a promessa de desenvolvimento, mas recheado de notificações.
Jean Twenge (2018) já havia soado o alarme: crianças nascidas sob o domínio da internet não estão apenas mais conectadas — estão mais ansiosas, frágeis e despreparadas para o mundo real. O digital não entrou como ferramenta, mas como realidade substituta. E agora? Agora a infância virou um ensaio beta de um humano que nem sempre deseja, mas sempre precisa performar.
Jonathan Haidt (2024), em seu estudo sobre a geração ansiosa, vai além e mostra que essa juventude que cresce sem frustração real, mas com excesso de proteção e dopamina, não suporta o contraditório. Ou seja: não há sujeito — há avatar. Um ego hipersensível que se dissolve ao menor atrito com o real, como se a dor fosse uma falha de design e não uma estrutura da existência.
E aqui entra Taleb (2013), cirúrgico como sempre: evitar o caos não fortalece — fragiliza. Sistemas (e sujeitos) que não sofrem não se tornam melhores, se tornam estéreis. Estamos formando uma geração que não cai — porque nunca sobe. O caos, que antes formava o caráter, agora foi substituído pelo tutorial. A dor? Pela notificação. A perda? Pela atualização de status.
Freud, com seu velho e insuportável recalque, já nos lembrava: o desejo nasce da falta. Mas como desejar quando tudo já está dado, antecipado, entregue por algoritmo? O narcisismo digitalizado substituiu o outro pelo reflexo. No narcisismo primário, sou idealizado; no secundário, busco essa idealização. Hoje, nem um, nem outro: sou algoritmo de mim mesmo, calibrando postagens para agradar a um espelho que já foi calibrado por mim. A perfeição é tanta que não há nem rachadura. E, portanto, nem subjetividade.
Lacan, se assistisse a um story, cairia da poltrona: “o desejo do homem é o desejo do outro” — mas que outro? Aquele que curte? Que silencia? Que arrasta para cima? Não há mais outro — há apenas o eu, hipereditado, dentro de uma vitrine que exige engajamento e não escuta. O espelho não reflete, repete.
Pierre Fédida talvez fosse o mais trágico dos convidados. Para ele, o sujeito só se constitui no luto, na perda, na elaboração do que escapa. Mas o sujeito contemporâneo não perde — ele atualiza. Sofre em silêncio? Nunca. Sofre no story. Chora? Sim, mas com filtro. O luto foi sequestrado pela estética da superação. Não se trata mais de sentir, mas de ilustrar o sofrimento. O sintoma? Não é mais sintoma — é conteúdo.
Byung-Chul Han fecha esse corte com bisturi de precisão: vivemos na sociedade da autoexploração, da positividade tóxica e da performance emocional. O sofrimento é permitido — desde que seja produtivo. Desde que gere clique. Desde que seja digerível. A dor que não engaja é descartada. O trauma que não cabe num carrossel é ignorado. O mal-estar? Precisa caber num template.
E então, Cioran me sopra ao ouvido — ou talvez ao feed: “Não é a ausência de sentido que nos desespera, mas o fato de não conseguirmos viver sem fingir que ele existe.” Talvez o algoritmo seja isso: o fingimento perfeito de que há sentido onde só há repetição. Onde só há performance. Onde só há ausência com Wi-Fi.
Neste cenário, a infância virou laboratório de distrações e a educação, um tutorial infinito. A pergunta não é mais “o que a criança aprende?”, mas “com que velocidade ela se adapta ao ritmo da máquina?”. E se isso não te incomoda, talvez o que precise ser atualizado não seja o software da criança — mas o seu.


Referências:

HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa: como o uso excessivo de telas está deixando nossos filhos infelizes, frágeis e despreparados para a vida. São Paulo: Intrínseca, 2024.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017.

FEDIDA, Pierre. O nascimento do luto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: Obras completas, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

TALeb, Nassim Nicholas. Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

TWENGE, Jean M. iGen: Por que os superconectados estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes – e completamente despreparados para a vida adulta. São Paulo: nVersos, 2018.

CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. São Paulo: Rocco, 2003.

PORTAL RAÍZES. Países que sabem que aprendizagem não é distração não permitem que a internet se torne brinquedo de criança. Disponível em:
 
https://www.portalraizes.com/pais-que-sabem-que-aprendizagem-nao-e-distracao-nao-permitem-que-a-internet-se-torne-brinquedo-de-crianca/. Acesso em: 19 maio 2025.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...