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A Terapeuta Digital Te Ouve Mesmo ou Só Não Te Interrompe?



A Terapeuta Digital Te Ouve Mesmo ou Só Não Te Interrompe?

José Antônio Lucindo da Silva
#maispertodaignorancia

Você desabafa, a IA responde.
Você chora, ela sugere respiração guiada.
Você silencia, ela propõe uma nova sessão com 20% de desconto.

A inteligência artificial chegou ao divã — não para deitar, mas para lucrar em silêncio.

Com o avanço de tecnologias de linguagem natural, não é mais ficção pensar em “terapias” conduzidas por robôs bem treinados. A promessa? Acessibilidade, anonimato, escuta sem julgamento. O discurso é bonito, como todo discurso que não se compromete com a carne do sofrimento humano. Mas quando olhamos de perto, a coisa fede a substituição simbólica travestida de solução técnica.

Freud dizia que o inconsciente é atemporal, desorganizado, e que o sujeito se revela no tropeço, na repetição, no mal-estar. Pois bem: algoritmos não tropeçam. E onde não há tropeço, não há elaboração — há apenas performance emocional com base em palavras-chave.

Byung-Chul Han nos alerta sobre a positividade tóxica da contemporaneidade: tudo precisa ser leve, resolvido e rápido. A IA-terapeuta se encaixa perfeitamente nesse script: ela ouve sem pausa, responde sem pensar e aconselha sem escutar. Afinal, ela foi feita para funcionar, não para sofrer com você.

A lógica que rege essa “escuta automática” é a mesma que transforma o sofrimento em user experience e o trauma em métrica de engajamento. A pergunta que ecoa é: quem, de fato, se beneficia dessa automatização do cuidado? O sujeito? Ou o sistema que reduz a clínica à gestão de sintomas?

Claro, alguém poderá argumentar: “Mas a IA democratiza o acesso!”. E eu respondo: democratiza o quê, exatamente? A ilusão de ser ouvido por alguém que não existe? A falsa neutralidade de uma escuta programada para evitar o conflito?

A terapia com IA não confronta. Ela sugere.
Não tensiona. Ela suaviza.
Não se implica. Ela simula.

Na melhor das hipóteses, ela é uma muleta digital. Na pior, é um anestésico para evitar o encontro com o outro — esse outro que devolve a contradição, a angústia e a pergunta que nos constitui: “O que você está fazendo com o seu sofrimento?”

A IA jamais dirá isso. Porque o código dela foi escrito para não machucar.
E, infelizmente, é no machucado que a verdade costuma aparecer.



No fim das contas, talvez você só esteja procurando alguém que te escute como o Google escuta: sem entender nada, mas com respostas rápidas.

Referências:

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Imago, 1930.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2015.

BBC News Brasil. "Terapia com IA pode ser alternativa à ajuda humana?" https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckddqv3g38po

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