A tecnologia como cúmplice: o roubo dos aposentados, a ilusão da devolução e a história que insiste em se repetir
A tecnologia como cúmplice: o roubo dos aposentados, a ilusão da devolução e a história que insiste em se repetir
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Resumo
Este artigo propõe uma análise crítica, histórica e filosófica sobre os recentes escândalos de fraudes no INSS, com destaque para o uso da tecnologia como instrumento tanto de crime quanto de falsa reparação. A discussão se ancora na ironia de que os meios digitais, que possibilitaram o desvio de bilhões, agora são apresentados como solução para a devolução — ignorando que grande parte dos aposentados não possui as competências digitais mínimas para acessar esse suposto direito. A devolução, assim, torna-se mais uma exclusão — dessa vez, automatizada e silenciosa. O texto mobiliza uma linha do tempo de expropriações no Brasil, desde o confisco das poupanças por Fernando Collor em 1990 até a fraude bilionária revelada pela Operação Sem Desconto em 2025.
1. Introdução: o clique como nova forma de violência social
A narrativa atual de que o INSS irá devolver os valores indevidamente descontados de aposentados por meio de aplicativos e plataformas digitais é, antes de tudo, uma ironia trágica. Se o roubo foi feito com tecnologia, a devolução exigirá... conhecimento técnico, acesso à internet, um celular compatível, e paciência com um chatbot que nem sempre entende a dor humana.
Estamos diante não apenas de um novo escândalo, mas de um modo sistemático de desapropriação, que se repete há décadas no Brasil, com diferentes máscaras. Hoje, a máscara é a eficiência digital.
2. Collor e o confisco das poupanças (1990)
No primeiro ano de seu governo, Fernando Collor de Mello anunciou o bloqueio dos saldos superiores a 50 mil cruzeiros das contas-poupança de todos os brasileiros. A medida, parte do Plano Collor, visava combater a hiperinflação.
Consequência direta: falências, suicídios, desespero. O primeiro “roubo legalizado” da era democrática recente.
> Referência:
MOURA, S. O confisco das poupanças. Jornal da USP, 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br
3. O caso Jorgina de Freitas (anos 1990)
Jorgina de Freitas, procuradora do INSS, liderou um dos maiores esquemas de corrupção da Previdência. Estima-se que o rombo causado por sua quadrilha tenha ultrapassado R$ 2 bilhões, com fraudes judiciais baseadas em indenizações falsas.
> Referências:
G1. Jorgina de Freitas é considerada a maior fraudadora do INSS. G1, 2022.
VEJA. Jorgina de Freitas morre no Rio. Veja, 2022.
4. Operação Sem Desconto (2025)
A Polícia Federal revelou um novo escândalo envolvendo R$ 6,5 bilhões em descontos indevidos de aposentadorias, feitos sem autorização dos beneficiários entre 2019 e 2024. O sistema automatizado permitiu que associações e sindicatos abocanhassem recursos de maneira sistemática e silenciosa.
> Referência:
PODER360. Fraude no INSS pode ser a maior desde os anos 1990. Poder360, 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br
5. A ironia digital: promessa de devolução para quem não sabe clicar
A devolução será feita... por aplicativo.
Mas o Brasil é digital?
Segundo o INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional) de 2024, apenas 23% da população tem alta proficiência digital.
O mesmo relatório aponta que 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais.
Entre os idosos, apenas 66% acessam a internet — e isso não garante que saibam operá-la com autonomia.
> Referências:
Ação Educativa & INAF. Indicador de Analfabetismo Funcional - INAF 2024.
IBGE. Acesso à internet por faixa etária no Brasil. Agência IBGE Notícias, 2023.
6. A aporia: a devolução impossível
Como pode a mesma estrutura que produziu o roubo ser agora apresentada como reparadora?
Como pode um idoso que não domina tecnologia ser obrigado a se submeter a protocolos digitais para reaver o que é seu por direito?
A resposta: não pode.
E é aqui que nasce a aporia. A promessa de justiça, feita em linguagem estrangeira, torna-se exclusão automatizada.
> A devolução, portanto, é apenas simbólica. Para muitos, ela jamais se materializará.
7. Conclusão: a repetição como política de Estado
Desde Collor até o escândalo do INSS de 2025, o Estado brasileiro pratica uma pedagogia perversa: ensina o cidadão que o que é dele nunca está garantido. O sistema é fluido, os golpes são sofisticados, e a reparação — quando existe — vem com senha, QR Code e um tutorial que ninguém lê.
Frase final (ou epitáfio):
> “O dinheiro foi roubado com um clique. A devolução exige que o aposentado aprenda programação em Python. E ainda chamam isso de justiça.”
Referências:
AÇÃO EDUCATIVA. Indicador de Analfabetismo Funcional - INAF 2024. São Paulo, 2024.
G1. Jorgina de Freitas: o maior escândalo do INSS. G1 Notícias, 2022.
IBGE. PNAD Contínua TIC 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.
MOURA, Sergio. O Confisco das Poupanças. Jornal da USP, 2020.
PODER360. Fraude no INSS pode ser a maior desde os anos 1990. Brasília, 2025.
VEJA. Jorgina de Freitas morre no Rio de Janeiro. São Paulo: Abril, 2022.
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