Quando o Pêndulo Parar: Ou Como a Felicidade se Tornou um Produto Defeituoso
Tem dias em que me pergunto se o problema da humanidade é o sofrimento... ou a proibição de sofrer. Sofrer virou uma espécie de crime existencial, um erro de cálculo emocional, uma falha de sistema na grande engrenagem da positividade. Não é que não possamos mais sofrer — é que agora precisamos pedir desculpas por isso. Afinal, a felicidade virou uma obrigação civilizatória. Um aplicativo que, se não estiver rodando em segundo plano, significa que há algo de errado comigo.
Acontece que, como já disse aquele velho pessimista chamado Schopenhauer, a vida nada mais é do que um pêndulo que oscila entre o tédio e o desejo (SCHOPENHAUER, 2005). E nesse vai-e-vem incansável, esquecemos de perguntar: "Pra quê tudo isso?". Freud, com sua costumeira ironia, já tinha nos avisado que o projeto da felicidade não fazia parte do contrato original da criação (FREUD, 1996). Deus, ou o acaso — escolha sua metáfora preferida — esqueceu de incluir isso no pacote básico do ser humano.
O problema contemporâneo não é o sofrimento em si, mas o escândalo que ele provoca. No consultório, recebo sujeitos esmagados pelo imperativo de serem felizes. Vêm com a pergunta já formatada: "Por que eu não sou feliz?". Mas a questão deveria ser outra: "Quem disse que você precisa ser feliz o tempo todo?". A felicidade foi transformada em um imperativo moral, uma espécie de carteirinha espiritual que você precisa apresentar nas redes sociais para comprovar que está em dia com o universo.
Se Freud via o sofrimento como inevitável, Byung-Chul Han enxerga a felicidade como um produto desgastado pela lógica do desempenho (HAN, 2017). Agora, até o descanso precisa render, o amor precisa viralizar e o sofrimento... bem, o sofrimento precisa ser curado em até três sessões. A angústia não é mais estruturante, como queria Lacan; ela virou mau funcionamento.
A meritocracia emocional criou um script: sucesso, autoamor, plenitude, propósito. E se você tropeça nesse roteiro, é porque não está se esforçando o suficiente. O fracasso virou evidência de que o seu aplicativo interior está desatualizado. Pior ainda: virou conteúdo de autoajuda. O sofrimento deixou de ser vivido para ser monetizado.
Mas e se — só por exercício — a felicidade não for uma meta? E se for só um intervalo, um silêncio entre dois gritos, um gesto que ninguém filmou? E se ela for tão insignificante, tão humana, que não merece sequer um post? Segundo Pierre Fédida (2002), a impossibilidade do luto é o que adoece. Hoje, nem tempo para elaborar as perdas nos é dado. Sofrer virou um bug.
Na minha clínica — e na minha carne — aprendi que ser inteiro é muito mais interessante do que ser feliz. Porque ser inteiro inclui falha, queda, vergonha, limite. Inclui também respiro, prazer, encontro. Mas não exclui a dor. E isso, infelizmente, não dá like.
Zygmunt Bauman (2001) nos alertou sobre a fluidez das relações e a transformação de tudo em mercadoria. Até o sentimento virou marca. A felicidade se converteu em holograma: quanto mais você corre atrás, mais ela desaparece. E no fim, ela é cobrada como se fosse um direito constitucional da alma — mesmo que nunca tenha sido distribuída de forma igual.
Então talvez o papel da clínica não seja ajudar o sujeito a alcançar a tal felicidade, mas sim a suportar não ser feliz. A construir um caminho simbólico que não precise de curtidas para existir. A aceitar que o pêndulo está ali não para nos levar a algum destino, mas apenas para nos lembrar que estamos vivos, oscilando entre um abismo e outro.
E quando esse pêndulo parar, talvez seja só a morte. Porque enquanto ele balança, mesmo que com angústia, ainda há movimento. Ainda há vida.
Referências :
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FÉDIDA, Pierre. O ofuscamento do corpo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
Escrito por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância
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