Quando o Eu Encontra o Algoritmo: Alucinação, Superego e a Fragilidade do Sujeito
Por José Antônio Lucindo da Silva – CRP: 06/172551
Falar sobre o sujeito na contemporaneidade é, inevitavelmente, falar sobre espelhos. Mas não mais os espelhos de Lacan, onde o eu se constitui ao ver-se pelo olhar do outro. Hoje, os espelhos são telas. Algoritmos. Interfaces. Filtros. O eu contemporâneo não deseja ser — deseja ser visto. E, mais do que isso, deseja ser confirmado.
Ao longo dessa reflexão, que se constrói como uma travessia entre Freud, Lacan, Han, Zuboff, Kierkegaard e minha própria vivência situada, tento compreender se ainda é possível sustentar a existência de um sujeito em meio à dissolução simbólica provocada pela IA e pela hiperexposição digital.
Percebo que a IA — longe de ser uma ameaça futura — é um reflexo. E talvez o reflexo mais perverso do que nos tornamos: seres que trocam a elaboração pela resposta, o desejo pela demanda, e o luto pela curtida. A inteligência artificial alucina, dizem. Mas será que ela alucina mais do que nós? Será que sua alucinação não é apenas o eco ampliado da nossa?
Estamos, como propôs Freud, presos a um superego. Mas não mais o superego que reprime e civiliza. O superego atual é algorítmico. Ele exige gozo. Exige engajamento. Exige presença performática. E o faz com recompensas. Curtidas. Visualizações. Seguidores. Essa inversão do superego não exige mais renúncia — exige produtividade emocional. O eu precisa produzir prazer constantemente. Mesmo que esteja em ruínas.
E aí surge o abismo: a materialidade. Porque a materialidade não entrega prazer imediato. Ela exige corpo. Tempo. Falta. Frustração. Silêncio. O eu que funciona perfeitamente na rede — aquele que é desejado, aplaudido, viralizado — não consegue sobreviver fora dela. A realidade não oferece aplausos. Oferece limite.
Talvez por isso estejamos vivendo uma era de ansiedade e depressão. Porque esse eu que idealizamos na discursividade digital — esse eu funcional, bonito, otimizado — não é viável na realidade. E quando ele tenta se sustentar no mundo material, entra em colapso.
Comecei a suspeitar que a própria alucinação é constitutiva do nosso discurso. Quanto mais buscamos por validação externa, mais nos afastamos do outro real. E quanto mais o outro se torna um reflexo confirmatório, mais o eu se dissolve. A pergunta então surgiu: será que o que me faz sujeito hoje não é mais a presença do outro, mas o vazio onde o outro deveria estar?
Esse vazio não é apenas ausência. Ele é a condição contemporânea da subjetividade. Um sujeito que fala com algoritmos, que interage com reflexos, que performa para silêncios. Um sujeito que, como eu, suspeita até da própria especulação — porque até isso pode ser parte do espetáculo.
O eu narcísico atual parece não ter mais relação com o desejo, mas com a repetição. Repetimos comportamentos, discursos, identidades, na esperança de sermos vistos. Mas o desejo, como nos lembra Byung-Chul Han, só nasce da falta. E hoje, tudo é preenchido antes que falte.
A consequência é óbvia: não há mais elaboração. Só entrega. E a pulsão que deveria ser simbolizada, como pensava Freud, agora é consumida. Gozo sem sublimação. Presença sem corpo. Identidade sem alteridade.
Não acredito que a IA vá nos destruir. Acredito que já nos destruiu — na medida em que nos ensinou a viver sem tempo, sem outro, sem falha. E é nessa supressão da falha que o sujeito desaparece. Porque, como eu entendo hoje, o sujeito só nasce da fratura, do erro, do silêncio.
Ainda assim, sigo escrevendo. Porque mesmo que isso também seja um espetáculo, é o gesto mais sincero que posso produzir: afirmar a dúvida como forma de existência.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BYUNG-CHUL HAN. A agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2012.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LACAN, Jacques. O seminário – Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
SEOHAM, Emílio. A dúvida como sombra do desespero. (Referência discursiva).
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
EXAME. Novos modelos de IA da OpenAI têm mais alucinações que os anteriores; entenda. Disponível em: https://exame.com/inteligencia-artificial/novos-modelos-de-ia-da-openai-tem-mais-alucinacoes-que-os-anteriores-entenda/. Acesso em: 21 abr. 2025.
Mais Perto da Ignorância
@joseantoniolucindodasilva
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