O Implante e o Abismo: Por que Falar com os Próprios Pensamentos Não é Liberdade
Resumo:
Neste artigo, discuto as implicações éticas, psicológicas e filosóficas da proposta de implantes cerebrais que permitem ao sujeito “falar com seus próprios pensamentos”. A partir de autores como Freud, Lacan, Kierkegaard, Byung-Chul Han, Ernest Becker, Elizabeth Roudinesco e Emily cioran, problematizo a ideia de liberdade subjetiva na era da transparência neurotecnológica. Sustento que a promessa de acesso direto ao eu amplia a alienação e reforça a negação estrutural da condição humana, marcada pela angústia, pelo recalque e pelo vazio simbólico.
Palavras-chave: Psicologia; Ética; Neurotecnologia; Angústia; Subjetividade; Psicanálise.
Introdução
Vivemos uma era em que a tecnologia propõe, cada vez mais, a superação da condição humana. O recente avanço dos implantes cerebrais capazes de traduzir pensamentos em fala é anunciado como uma libertação. Mas ao refletir, como psicólogo, sobre essa proposta, percebo que ela escancara mais um capítulo da tentativa moderna de negar a própria essência da subjetividade: a angústia, a fratura e a dissonância interna. Este artigo nasce dessa inquietação.
O eu sob tensão: entre Freud e Roudinesco
Sabemos desde Freud que o eu não é senhor em sua própria casa. Ele é um campo de forças entre o id, o superego e a realidade externa. Ao pensar na possibilidade de dialogar com os próprios pensamentos, não vejo uma conquista da interioridade, mas uma instrumentalização da tensão. Elizabeth Roudinesco nos adverte que o eu contemporâneo se tornou um “eu soberano discursivo”, uma performance estruturada na demanda do olhar do outro, especialmente nas redes digitais.
Mentiras necessárias e o vazio estrutural
Ernest Becker nos ensina que o eu é uma mentira caracteriológica, construída para afastar a morte da consciência. Emílio Seoham aprofunda essa ideia ao nos lembrar do vazio existencial como fundamento da estrutura psíquica. O sujeito que se encontra consigo mesmo através de um implante não se reconhece — apenas repete, talvez com mais nitidez, o mesmo ruído que o constitui.
Angústia e a tentativa de sua superação técnica
Kierkegaard define a angústia como a vertigem da liberdade. Essa angústia, que revela o abismo entre o possível e o real, é fundamental para a constituição da subjetividade. Toda tentativa de eliminá-la — seja com discursos positivistas ou com implantes cerebrais — apenas reafirma sua presença. Paradoxalmente, ao buscar vencê-la, o sujeito reafirma o desamparo que tenta evitar.
O eu transparente e a perda do inconsciente
Byung-Chul Han denuncia a transparência como forma de dominação atual. O implante, ao transformar pensamento em dado, submete o sujeito a uma nova forma de vigilância e autoperformance. Lacan nos lembra que o sujeito é efeito do significante e só existe dentro da linguagem. Automatizar o pensamento é excluir o inconsciente, e onde não há inconsciente, não há desejo, nem Outro.
O tempo da espécie versus a pressa da técnica
A mente humana levou mais de cem mil anos para elaborar dispositivos psíquicos como recalque, sublimação e elaboração simbólica. Nenhuma tecnologia pode substituir essa complexidade. Reduzir o pensamento a fluxo direto é desconectar-se da experiência humana mais profunda: o tropeço, o silêncio, o mal-entendido.
Considerações finais
Falar com os próprios pensamentos não é encontro, é reducionismo. Como psicólogo, não vejo nessa promessa um avanço ético, mas um novo palco para a performance de um eu que deseja apagar sua própria condição trágica. A verdadeira liberdade talvez esteja em preservar aquilo que ainda não conseguimos (ou não devemos) dizer: o vazio, a dúvida, a angústia. O implante cerebral não nos aproxima de nós mesmos — ele apenas dá voz ao abismo.
Referências:
BECKER, Ernest. A negação da morte. São Paulo: Cultrix, 2007.
FREUD, Sigmund. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes, 2017.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ROUDINESCO, Élisabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivações da identidade contemporânea. São Paulo: Zahar, 2010.
Por : José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551 joseantoniolcnd@gmail.com
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