No deserto de discursos: uma travessia irônica da não escolha
Resumo: Este artigo-reflexão é uma travessia pessoal e irônica pelas paisagens áridas da discursividade contemporânea, marcada por uma hiperexposição simbólica e pela ilusão de escolha. Parto da consciência de que tudo já virou conteúdo, inclusive este próprio texto. Ao caminhar entre Nietzsche, Byung-Chul Han, Jean Twenge, Susana Zuboff, Shakespeare, Erving Goffman e Amélie Nothomb, procuro não encontrar saída, mas apenas sustentar o desconforto da própria presença.
Palavras-chave: discurso, ironia, não-escolha, materialidade, capitalismo de vigilância
Eu começo este texto como quem sabe que está sendo vigiado. Não me refiro apenas aos olhos do leitor (que, se chegou até aqui, merece um prêmio ou um alerta), mas ao sistema. Sim, aquele mesmo que Susana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2020). Estou aqui, falando sobre ele, alimentando-o. Que ironia.
Eu tento resistir, claro. Tento não postar, não comentar, não reagir. Mas até meu silêncio foi sequestrado. Meus rastros, meus nãos, meus atrasos... tudo já é estatística. E isso é o mais trágico: o sistema não precisa mais do meu discurso. Precisa do meu comportamento. E o comportamento se dá mesmo quando me calo.
Dentro dessa arena discursiva, todos querem ser Deus. Todos querem ter a verdade, como se a verdade não estivesse, ela mesma, exausta. Nietzsche, sempre mais preciso que eu, já dizia: tudo que precisa ser demonstrado, não vale nada (NIETZSCHE, 2010). E aqui estamos nós, gritando no deserto.
Porque é disso que se trata, não é? Um deserto. Como afirmei em uma conversa que virou inspiração deste texto: "isso aqui é só um deserto". Um deserto simbólico, mediático, cheio de palavras que não sustentam sede alguma. E no meio disso, a ironia se tornou abrigo. Não esperança, não saída, apenas abrigo. Um sorriso inclinado, como quem sabe que já foi capturado, mas finge que ainda é livre.
Byung-Chul Han talvez dissesse que estamos numa sociedade positiva, onde tudo é transparente, mas nada é real (HAN, 2017). Vivemos entre hashtags e performances emocionais, onde até a dor já é estetizada, convertida em engajamento. É como Amélie Nothomb nos mostrou em Higiene do Assassino: o discurso já está podre antes de sair da boca. Ainda assim, o personagem fala, porque não sabe não falar (NOTHOMB, 1992).
E eu também não sei. Falo aqui não por esperança, mas por lucidez. A escolha? Não, não se trata de escolha. Jean Twenge alertou que a nova geração acredita ter liberdade, mas está presa em um labirinto de toques e deslizes (TWENGE, 2018). A ilusão da escolha é mais alienante do que a ausência dela. E nós, adultos conscientes, seguimos como Sísifo, mas agora com um smartphone na mão. Empurramos a pedra sorrindo, fazendo lives, e dizendo que é sobre resiliência.
Erving Goffman já havia denunciado tudo isso antes da internet existir: a vida é palco, e o eu é um personagem (GOFFMAN, 1985). O problema é que hoje não há mais bastidor. Até o bastidor foi publicado em carrossel. O silêncio virou estética. A crítica virou algoritmo.
E eu? Eu sigo. Caminhando no deserto com esse corpo que ainda precisa de um frango, como lembrei em voz alta. Porque, no fim, a única materialidade que me ancora é o cansaço, a fome, o sono. Tudo que o discurso não pode simular por completo. Talvez seja isso que ainda me pertence. Ou talvez nem isso.
Referências:
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2010.
NOTHOMB, Amélie. Higiene do Assassino. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
TWENGE, Jean M. iGen: Por que os jovens superconectados de hoje estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes — e completamente despreparados para a vida adulta. São Paulo: Cultrix, 2018.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Por: José Antônio Lucindo da Silva | CRP: 06/172551
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