Manual Íntimo para Super-Heróis de Papelão
(ou: por que o planeta não liga para sua marca pessoal)
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1. Introdução: aperte o cinto, o feed sumiu
Ligamos o celular para verificar a “vida real” e descobrimos que ela vem sendo reescrita por relatórios climáticos com mais likes do que qualquer selfie nossa: +1,55 °C além da média pré-industrial em 2023/24 (ORGANIZAÇÃO METEOROLÓGICA MUNDIAL, 2024). O algoritmo, ao que parece, não avisa quando a atmosfera muda de versão.
Enquanto isso, continuamos a vestir a armadura narcísica descrita por Ernest Becker: a mentira caracteriológica que nos vende a ilusão de sermos especiais o bastante para driblar a morte (BECKER, 2014). A ironia? O dióxido de carbono não segue influenciadores.
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2. O ego como protocolo de emissão
1. Premissa ontológica - “Eu posto, logo persisto”.
2. Resultado termodinâmico - cada like custa alguns gramas a mais de CO₂ no data center.
A alta performance individual virou combustível literal. Nosso esforço em “deixar marca” imprime, na prática, queimadas no Cerrado e chuvas milenares em Porto Alegre (WORLD WEATHER ATTRIBUTION, 2024).
Byung-Chul Han chamaria isso de a sociedade do cansaço auto-infligido (HAN, 2017). Nietzsche, menos polido, diria que trocamos o “combate da existência” pelo tilintar de moedas no Instagram.*
> * Genealogia da Moral, terceira dissertação, mas adaptada ao século XXI.
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3. A matéria responde com emojis hidrometeorológicos
Chuva extrema na França (2024): 700 mm em 48 h.
Seca histórica no Amazonas (2023): rios a −14 m do nível médio.
Enchente no RS (2024): probabilidade multiplicada por 20 pela ação humana (WORLD WEATHER ATTRIBUTION, 2024).
Esses “emojis” não pedem atenção; jogam a porta abaixo. Como lembra o AR6, cada grau extra amplifica as precipitações intensas em ~7 % (IPCC, 2021).
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4. Ironia: o sublime sem filtro
A chuva que destrói pontes é a mesma que, há 40 mil anos, fez nossos ancestrais correrem para a caverna e inventarem o fogo como Netflix original da espécie (HARARI, 2015). O sublime sempre esteve ali — mas nós preferimos a notificação que vibra na mão.
Quando a água invade a sala, redescobrimos a lição básica de Freud: a pulsão de morte não some porque a bloqueamos no feed (FREUD, 2010). Ela retorna, líquida, carregando sofás.
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5. Ética do pó: três movimentos mínimos
1. Re-materiar a atenção
Ler o boletim hidrológico antes do cotação do Bitcoin.
2. Assumir o conflito
Cada quilowatt “limpo” exige lítio, água, mineração; não existem escolhas neutras.
3. Praticar humildade termodinâmica
A física ganha todas as eleições. Sempre ganhou.
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6. Conclusão: sua legacy cabe num saco-de-lixo biodegradável
Se, como diz Becker, o herói moderno teme dissolver-se no anonimato, talvez a imagem final seja esta: o influenciador planetário, recolhendo detritos da própria enchente que ajudou a causar, ainda preocupado em posar bem para a câmera.
A boa notícia? O sublime continua não pedindo atenção. Ele só pede coragem para olhar a água subindo sem mentir sobre ela.
> “Existir é permanecer no calor, na enchente, no vento — sem hashtags que salvem.”
Silvan
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Referências (ABNT)
BECKER, Ernest. A negação da morte. Tradução: Ivan Stenzel. Rio de Janeiro: Record, 2014.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução: Janaína Senna. São Paulo: L&PM, 2015.
IPCC. Relatório de Avaliação AR6: Sumário para Formuladores de Políticas. Genebra: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, 2021.
ORGANIZAÇÃO METEOROLÓGICA MUNDIAL (WMO). Estado do Clima Global 2024. Genebra: WMO, 2024.
WORLD WEATHER ATTRIBUTION. Southern Brazil Floods, May 2024 – Rapid Attribution Analysis. Londres: WWA, 2024.
Escrito por:
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP: 06/172551
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