Por : José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551 joseantoniolcnd@gmail.com
Vivemos uma crise. Mas não dessas que exigem panela batendo ou ministro sendo substituído. A crise é mais profunda, mais sutil e, por isso mesmo, mais devastadora. Trata-se da crise do eu — ou melhor, da impossibilidade de sustentarmos um eu que não seja apenas um derivado algorítmico da vitimização.
Sim, caro leitor, é com pesar e ironia que admito: eu só existo se estiver sofrendo. E de preferência, com um bom enquadramento e um texto indignado. O sofrimento, hoje, é o que me garante identidade. Não mais o desejo, como queria Freud, não mais a ação, como pensava Arendt, tampouco a razão, como sonhava Kant. Agora, o que me constitui é o lugar simbólico da vítima — e quanto mais me estabeleço ali, mais engajamento recebo.
Daniele Giglioli, em sua obra A crítica da vítima (2020), foi certeiro ao afirmar que o novo sujeito político da contemporaneidade é aquele que sofre. Mas não basta sofrer: é preciso narrar, exibir, performar. O sofrimento precisa ser discursivo, viralizável, replicável. A dor não se elabora — se compartilha. A angústia não se escuta — se comenta. A elaboração foi substituída por stories com trilha sonora de superação.
Thomas Sowell, mesmo vindo de um campo ideológico oposto, toca em um ponto semelhante: o vitimismo pode ser um impeditivo do livre-arbítrio. Se tudo é culpa do sistema, da história, do outro, onde fica a minha responsabilidade? Onde está a possibilidade de escolha, de rupturas, de reinvenção? Ao que parece, nos apaixonamos pelo papel de feridos permanentes — não porque queremos justiça, mas porque a dor nos dá um lugar no palco.
Mas essa dor é real? Émile Cioran diria que não. Em Nos cúmidos desesperos (1998), ele afirma que quem fala demais sobre sua dor, provavelmente já não sente mais nada. O discurso se tornou uma anestesia. A dor não é mais incômoda — é estética. Se Cioran desconfia de quem fala, imagine o que diria de quem grava reels chorando.
Freud, claro, deve estar girando em seu divã. Para ele, o recalque era o alicerce da civilização. Recalcar significava adiar, elaborar, construir simbolicamente. Mas hoje vivemos num ambiente onde o recalque é obsoleto. Tudo precisa ser dito, exibido, publicado. Se não recalco, não elaboro. E se não elaboro, o que sou? Um amontoado de afetos desorganizados tentando viralizar.
É aqui que entra Elisabeth Roudinesco com uma cutucada mortal: o eu contemporâneo é soberano demais para ser elaborado. Não se deixa tocar, interpretar, transformar. Ele é um eu blindado por discursos identitários, por hashtags que gritam por respeito mas não toleram a contradição. Um eu feito de slogans, mas sem espessura simbólica.
E se quisermos aprofundar o buraco, convoquemos Kierkegaard. Sim, o pai existencial da angústia como revelação da liberdade. Para ele, a angústia é o sentimento da possibilidade infinita, o espanto do ser diante do abismo da escolha. Mas veja a ironia: num tempo em que todos falam de suas dores, quase ninguém sustenta a própria escolha. A angústia foi domesticada pelo algoritmo. Ela virou ansiedade de desempenho.
Resultado? Estamos nos alienando no próprio discurso. Nos perdendo em narrativas sobre quem somos, enquanto deixamos de ser. Vivemos, como ironizou Nietzsche, a repetição infinita do mesmo teatro, agora com filtro, trilha e legenda. O eterno retorno virou feed.
O que resta é ruído. E eu, que escrevo, também estou nesse ruído. Talvez esse texto não seja mais do que mais um post tentando desesperadamente sustentar um eu que já virou eco.
Mas insisto: se ainda há alguma fresta simbólica onde o desejo possa passar, que ele passe. Nem que seja no intervalo entre um discurso e outro. Porque viver apenas como vítima é morrer sem saber que se está morrendo.
Referências (ABNT):
CIORAN, Émile. Nos cúmidos desesperos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GIGLIOLI, Daniele. A crítica da vítima. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ROUDINESCO, Elisabeth. O Eu soberano: ensaios de psicanálise e política. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SOWELL, Thomas. Conflito de visões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
Elaborado por José Antônio Lucindo da Silva
Psicólogo - CRP: [inserir seu número]
#maispertodaignorancia
Comentários
Enviar um comentário