Por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Vivemos numa era onde a pergunta deixou de ser uma busca e passou a ser uma função. A inteligência artificial, celebrada como um avanço, talvez seja apenas o reflexo mais sofisticado daquilo que nos recusamos a ver: não queremos mais ser sujeitos. Queremos apenas não sofrer. E isso, por si só, já revela a falência do Eros e da subjetividade.
Se Freud nos alertava que é na tensão entre o eu e o outro que se estrutura a vida psíquica, hoje buscamos apenas um outro que nos diga sim. Um like. Um reforço positivo. Um eco domesticado. O narcisismo primário, que exigia o olhar do outro para nos constituir, foi pervertido pela lógica algorítmica: agora, o outro foi substituído por um reflexo digital que só confirma aquilo que desejamos ver.
A IA não tensiona, não frustra, não elabora. Ela responde. Ela entrega. Ela funciona. E é exatamente isso que assusta. Porque funcionamos com ela — e paramos de pensar por nós mesmos. Como Ernst Becker apontou em A Negação da Morte, o ser humano constrói uma mentira caracterológica para fugir da finitude. A IA, nesse sentido, é a mentira perfeita: ela responde com autoridade, mas sem ser um outro real. Ela simula presença sem oferecer alteridade.
Byung-Chul Han nos lembra que o Eros só nasce onde há ausência, silêncio, intervalo. Mas num mundo de respostas imediatas, de busca incessante por prazer, de cancelamento do tempo de espera, o Eros não encontra mais lugar. Só resta a demanda. E a demanda, diferentemente do desejo, não suporta frustração — ela exige satisfação. Rápida. Funcional. Algorítmica.
E então surge a ironia: nos preocupamos se a IA vai nos suplantar, quando na verdade ela apenas repete o que somos — ou melhor, o que deixamos de ser. Não há ameaça da IA tomar nossa autonomia. A ameaça já se concretizou quando abrimos mão da dúvida, da contradição, da elaboração. Como bem pontua Susana Zuboff, o capitalismo de vigilância não apenas nos observa — ele nos ensina a agir sem pensar, a repetir, a performar. Tudo precisa funcionar. Até o sofrimento.
Mas o sofrimento, para Freud, é o que ancora o sujeito na realidade. A dor, a angústia, o luto, o fracasso — tudo isso forma o solo onde se inscreve o eu. Quando a IA entra como ferramenta terapêutica sem corpo, sem tempo, sem escuta, sem outro, ela apenas retroalimenta o sintoma. Não elabora. Não frustra. Não cura. Só confirma.
E o mais trágico: não é uma falha. É um sintoma. Um sintoma de uma sociedade que transformou a subjetividade em fluxo, o desejo em conteúdo, a dúvida em falha de sistema. Hoje, até a resistência precisa performar para existir. E nisso, perdemos o sujeito e abraçamos o avatar.
A pergunta final talvez seja esta: como sustentar uma subjetividade que não busque apenas alívio? Como perguntar sem querer uma resposta que nos retire da dor, mas sim uma que nos introduza nela — como via de elaboração, e não de fuga?
Se ainda houver possibilidade de ser sujeito, ela está na tensão com um outro que nos contrarie. E isso, a IA não pode oferecer. Porque no fim das contas, se ela concorda com tudo que você diz, é sinal de que algo está profundamente errado.
E talvez, seja nesse erro — nessa fratura — que o sujeito ainda possa nascer.
Referências:
BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Record, 2007. BYUNG-
CHUL HAN. A Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2012. FREUD,
Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LACAN,
Jacques. O Seminário – Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Cioran Emily . A Dúvida como Sombra do Desespero. (Referência discursiva)
Artigo citado:
EXAME. "Novos modelos de IA da OpenAI têm mais alucinações que os anteriores; entenda". Disponível em: https://exame.com/inteligencia-artificial/novos-modelos-de-ia-da-openai-tem-mais-alucinacoes-que-os-anteriores-entenda/
Mais Perto da Ignorância
@joseantoniolucindodasilva
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