Entre o Eu Customizado e o Sentimento Oceânico: Ensaios sobre o Colapso da Subjetividade
Por José Antônio Lucindo da Silva – CRP 06/172551
Vivemos em um tempo em que o "eu" deixou de ser construído para ser customizado. E não se trata de um jogo de palavras, mas de um deslocamento ético, simbólico e estrutural que denuncia o esvaziamento da subjetividade. Como sustentar um sujeito ético se o "eu" é apenas um template performativo validado por algoritmos e moldado por demandas e curtidas? Como falar em valores ou mesmo em sofrimento, se este é rapidamente convertido em post, meme, diagnóstico e métrica?
Freud, em O Mal-Estar na Civilização, foi claro ao afirmar que a felicidade não foi considerada pelo Criador como parte do projeto da criatura. A civilização exigiria, portanto, repressão das pulsões, recalque, e o surgimento de um superego que, mesmo cruel, forneceria os limites necessários à construção simbólica. No entanto, o que temos hoje é um cênico onde o recalque não mais opera. E onde não há recalque, também não há elaboração.
Zygmunt Bauman nos ajuda a compreender esse deslizamento. Na modernidade líquida, as relações humanas, o trabalho e até o próprio eu são atravessados por uma fluidez que dissolve o tempo e o compromisso. A subjetividade se converte em mercadoria; o sujeito, em objeto funcional. Não é mais a repressão que limita o desejo, mas a hiperdisponibilidade de ser qualquer coisa que acaba por esgotar a possibilidade de ser.
A proposta de um eu que se deseja não mais se sustenta. Hoje, qualquer eu pode ser qualquer um. E isso é exaustivo.
O sentimento oceânico que Freud menciona, essa sensação de fusão com o todo, era um dos poucos rastros de ética presente na experiência do sujeito em relação ao mundo. Mas como experimentar esse sentimento se tudo é captura? Se o outro não é mais aquele que convoca à escuta, mas apenas espelho ou público? A ética, reduzida à performatividade do politicamente correto, é apenas uma estética funcional: o sujeito deve parecer coerente, engajado, produtivo e feliz.
E é nesse ponto que surge o colapso: o trabalho, que deveria ser o eixo materializador do sujeito no mundo, tornou-se o espaço de maior sofrimento. Burnout, ansiedade, depressão, diagnósticos identitários cada vez mais populares, não são sintomas do fracasso de um "eu" que busca realização, mas do colapso de um "eu" que precisa se vender. O sofrimento virou produto; a dor, performance.
Não há mais grupos de pessoas, como você bem disse, mas eus performativos, fechados em seus quartos, conectados a seus celulares, buscando alguma forma de existir através da repetição do mesmo.
Essa é a aporoxia: quando o discurso, em sua liberdade absoluta, elimina qualquer possibilidade de elaboração simbólica real. Quando o desejo é substituído por demanda, e a subjetividade é submersa em um mar de possibilidades que não sustentam nenhum laço.
Talvez a única ética que nos reste seja a da escuta profunda. A escuta da contrariedade, do recalque, da dor que não quer ser resolvida, mas reconhecida. Uma ética que aceite não a plenitude do eu, mas sua instabilidade. Seu intervalo entre o vir a ser e o não ser.
Porque, no fim das contas, como você mesmo disse: o eu não se apresenta. Ele apenas se publica.
Referências:
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
CIORAN, Emil. O incômodo de ter nascido. São Paulo: Rocco, 2016.
FÉDIDA, Pierre. Lógica da cura. São Paulo: Escuta, 2001.
Por: José Antônio Lucindo da Silva | CRP: 06/172551
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