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DOOMSCROLLING, ENGRENAGEM E EXISTÊNCIA: O PARADOXO DA PRESENÇA DIGITAL NA ERA DA NEGATIVIDADE FUNCIONAL





DOOMSCROLLING, ENGRENAGEM E EXISTÊNCIA: O PARADOXO DA PRESENÇA DIGITAL NA ERA DA NEGATIVIDADE FUNCIONAL

Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o fenômeno do doomscrolling à luz da lógica discursiva mediática contemporânea. Partindo da constatação de que o consumo excessivo de conteúdos negativos está longe de ser um acidente e se aproxima de uma funcionalidade algorítmica, argumenta-se que até a crítica se tornou mercadoria, dissolvendo o sujeito em uma performance de presença constante. Utiliza-se o pensamento de Byung-Chul Han, Sigmund Freud e Emil Cioran para pensar o esvaziamento da alteridade, a monetização da angústia e a perda de sentido simbólico nas interações digitais. O texto é escrito em primeira pessoa como recurso metodológico para mostrar a implicação do próprio autor no fenômeno que denuncia.

Palavras-chave: Doomscrolling; Algoritmo; Angústia; Alteridade; Discurso mediático.


1 Introdução

Eu poderia dizer que acordei mais um dia e, sem pensar, deslizei o dedo para baixo. Mas isso seria mentira. Eu pensei, sim. E pensar, hoje, é parte do problema. Porque até o pensamento — esse velho lugar de refúgio, crítica e silêncio — foi capturado pelas engrenagens do algoritmo. Não há mais neutralidade. Todo gesto, todo texto, todo clique é presença calculada.

O doomscrolling, termo utilizado para descrever o consumo compulsivo de notícias negativas nas redes sociais, parece um desvio de comportamento. Mas é, na verdade, um sintoma de algo muito maior: uma lógica técnica e discursiva que transforma até o sofrimento em capital. Como pontua Angelica Mari (2025), a exposição constante a tragédias digitais atende tanto a um apelo biológico (a vigilância do perigo) quanto a um desenho intencional das plataformas.

A negatividade como presença simbólica

Não estar nas redes é quase não existir. O silêncio digital foi sequestrado por uma lógica paradoxal: não postar é uma forma de performance. Recusar-se a engajar é também ser computado como dado. Até a ausência está funcionalizada. Assim, a negatividade — o medo, a angústia, a indignação — torna-se moeda legítima de engajamento. O sofrimento, antes íntimo, vira público, metrificável e monetizável.

Como argumenta Byung-Chul Han (2022), o outro, nesse cenário, perde sua alteridade e torna-se apenas uma funcionalidade. Não há mais interpelação ética — apenas reação. O feed é a confirmação de nossas bolhas, de nossas crenças, de nosso ressentimento. E se algo aparece fora disso, ou é cancelado ou é absorvido como exceção performativa.

Quando até a crítica vira funcionalidade

Mesmo esta reflexão, escrita agora, participa do paradoxo. Porque até a crítica se tornou funcional. A lucidez virou nicho. A contracultura é um filtro. A análise virou legenda. Freud (2010), ao refletir sobre o mal-estar civilizatório, já antecipava o esgotamento do sujeito frente às exigências da cultura. Hoje, essas exigências foram traduzidas em métricas: curtidas, compartilhamentos, tempo de tela.

Cioran (2019) talvez tivesse rido disso. Ou chorado. Para ele, pensar era não se adaptar. Mas hoje, pensar é só mais uma das formas de gerar conteúdo. A crítica deixou de ser ruptura e se tornou fluxo. Uma engrenagem sutil, que alimenta a mesma máquina que diz combater.


Considerações finais

A verdadeira pergunta que me faço é: existe saída? Ou a própria ideia de resistência já foi absorvida? Talvez, como último resquício de autonomia, reste o silêncio — não como sabedoria, mas como desengajamento. Ainda assim, sei que o silêncio pode ser capturado, transformado em estética minimalista e devolvido como produto.

O doomscrolling é menos um vício pessoal e mais uma evidência de que a dor, hoje, também tem função social. E pior: ela pode render lucro. E se até o desespero engaja, talvez resistir seja, paradoxalmente, calar. Mas mesmo isso... só até o próximo post.


Referências

CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. São Paulo: Rocco, 2019.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. Obras Completas, v. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Tradução de Miguel Serras Pereira. Petrópolis: Vozes, 2022.

MARI, Angelica. O que é doomscrolling e por que é tão prejudicial: entenda o fenômeno. O Estado de S. Paulo – Link, 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/link/cultura-digital/o-que-e-doomscrolling-e-por-que-e-tao-prejudicial-entenda-o-fenomeno-nprei/. Acesso em: 13 abr. 2025.



Escrito por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância

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