Avançar para o conteúdo principal

Do Alô ao Adeus: breves anotações sobre um aparelho que virou túmulo




Do Alô ao Adeus: breves anotações sobre um aparelho que virou túmulo

"Ninguém deveria morrer por um objeto inanimado — ainda mais um que foi criado apenas para fazer ligações."


1. Prólogo: o som do primeiro ‘alô’
O celular nasceu tímido. Um intermediador entre vozes distantes, uma solução para encontros impossíveis. Era um fio invisível que encurtava o espaço, mas não o tempo. Para usá-lo, era preciso *ligar* — verbo já em desuso. Sua função era direta, objetiva, sem mistério. Mas isso foi antes do 'eu'.

2. Mutação: do aparelho à persona
Com o tempo, o celular abandonou sua modéstia. Ganhou câmeras, redes, memórias, curtidas. Deixou de ser um meio e passou a ser o espelho portátil do sujeito contemporâneo. Não se liga mais para ouvir, apenas para se ver sendo visto. A câmera frontal substituiu o ouvido. O celular se tornou um altar portátil do ego — e onde há altar, há sacrifício.

3. O ‘eu’ dentro do bolso
Hoje o celular é identidade, banco de dados afetivos, diário digital, confessionário e vitrine. O sujeito pós-moderno — ou pós-real — não vive sem ele porque já não sabe viver fora dele. E então, se esse aparelho for tomado, é como se lhe tomassem o próprio corpo simbólico. Não é apenas o celular que se leva, mas o 'eu' ali armazenado: fotos, mensagens, senhas, desejos, rastros. Roubar um celular é roubar um pequeno 'eu-digitalizado'.

Jean Twenge nomeou uma geração inteira por um aparelho: *iGen*, a geração do “i” de *iPhone*, *Instagram* e, ironicamente, de *isolamento*. O celular, para esses sujeitos, não é apenas um dispositivo — é o próprio chão da identidade. É uma geração que aprendeu a rolar a vida com o polegar, a medir autoestima por visualizações e a fugir do silêncio com notificações.

Twenge revela que o índice de depressão e suicídio entre jovens disparou em paralelo ao aumento do uso de smartphones. O celular, em vez de proteger a vida, tornou-se o altar onde se sacrifica a sanidade, o laço social, a corporeidade — e, nos piores casos, a própria vida do outro.

4. Quando o objeto vale mais que a vida
É aqui que a tragédia se impõe: *por que alguém tira a vida do outro por um celular?* A resposta racional é impossível. Mas no campo simbólico, há algo a ser visto: o celular se tornou um bem mais valioso do que a própria vida concreta — porque passou a representar a vida ideal, editada, performada. No desespero de habitar essa ilusão, vale tudo: inclusive matar ou morrer.

No Brasil, o número de roubos de celulares — muitos dos quais terminam em morte — não para de crescer. E a questão aqui não é moralizar a vítima, tampouco romantizar o autor do crime. É perguntar com frieza: *que valor simbólico foi depositado nesse objeto para que ele se tornasse maior que a vida do outro?* A resposta pode estar nos algoritmos que nos colonizam. Nos aplicativos que cavam silêncios e constroem sujeitos viciados em autoimagem. O celular foi feito para conectar, mas opera como uma técnica de desconexão — inclusive da nossa própria humanidade.

5. Nenhuma vida deveria acabar por um objeto
Este texto jamais se propõe a justificar o absurdo. Muito pelo contrário: seu objetivo é denunciar o grau de delírio simbólico a que chegamos. Nenhuma vida, de nenhuma espécie, deveria ser interrompida por um objeto — ainda mais um inanimado, ainda mais um criado para nos *ligar*. A morte por um celular é a mais escandalosa desconexão: a vida real sendo sacrificada em nome de um avatar.

6. Epílogo: silêncio na linha
Talvez a maior ironia disso tudo seja que, em um mundo onde todos têm um aparelho no bolso, ninguém mais se liga. Ninguém mais conversa. Ninguém mais escuta. Morre-se por um celular, mas não se vive mais através dele.

Como diria Byung-Chul Han, o aparelho não apenas esgota nossa energia: ele nos captura. E Cioran, talvez, sussurraria que morrer por um aparelho assim é o fim natural de uma humanidade que abdicou do seu abismo para viver na tela.

Referências:
- Twenge, Jean M. *iGen*. Atria Books, 2017.

- Han, Byung-Chul. *Sociedade do Cansaço*; *Psicopolítica*; *Sociedade da Transparência*.

- Cioran, Emil. *Breviário de Decomposição*; *O Inconveniente de ter nascido*.

- Dados públicos de violência no Brasil (IPEA, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023).

por: José Antônio Lucindo da Silva CRP: 06/172551
E-mail: joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia | @maispertodaignorancia

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...