Diálogo entre Eu e Silvano — Existir Entre Restos
Neste diálogo, atravessamos reflexões sobre a materialidade da vida, a falsa promessa da felicidade futura, e a alienação contemporânea. Com base em autores como Byung-Chul Han, Friedrich Nietzsche, André Green e Slavoj Žižek, o texto busca desconstruir ilusões modernizadas sobre resistência, felicidade e sofrimento.
Eu: A incongruência parece ter se tornado o novo normal, Silvano. A cada dia que vivo, me parece mais claro: nossa relação com o trauma, com a existência, com a própria história, é atravessada por uma linha torta. Nada é reto, nem mesmo a dor.
Silvano: É, meu chapa... Você ainda tem fome de tentar explicar? Hahaha. Eu tô aqui, ó, sentado no barranco da vida, vendo os helicópteros da modernidade passando e derrubando areia em cima da gente. No fundo, só existe a vida que já ficou pra trás. A que tá aqui, essa que chamam de 'agora', essa a gente nem sente mais.
Eu: E não é só sensação, não. É como o Byung-Chul Han diz: a violência hoje não é mais um confronto direto. Ela virou uma positividade silenciosa, se espalhando como um vírus (HAN, 2017). A gente nem sente o golpe — só vai definhando sem saber.
Silvano: Faz sentido. Esses contemporâneos tão aí todos acelerados, mas tão correndo pra lugar nenhum. E nós, que ainda somos restos de um tempo que nem se reconhece mais, somos o quê? Resistência? Não. Resistir a quê? Ao fluxo de dados? Resistir é agora um luxo arcaico.
Eu: Se é que existiu alguma resistência de verdade, né? Como o Han escreveu, o poder mais forte é aquele que atua sem se mostrar (HAN, 2017). Quando a gente acha que tá resistindo, já é tarde: já estamos desejando aquilo contra o qual a gente pensava lutar.
Silvano: Ah, e tu ainda fala em 'querer'... Vai vendo. Querer é palavrinha da Era da Morte do Eros (HAN, 2017). Ninguém quer nada. Só seguem o algoritmo do que aparece na frente. Clicam, deslizam, esquecem.
Eu: E no meio disso tudo, ninguém percebe o mais simples: todo mundo corre pra viver a vida, mas só existe vida vivida no agora. Não há vida a ser vivida na discursividade da subjetividade. Só existe a vida — e ela só se sustenta na sua materialidade.
Silvano: É, e viver feliz virou a palavra mágica. Só que ninguém para pra pensar: se a felicidade só pode ser vivida agora, porque diabos a gente a empacota pro futuro? Cada promessa de felicidade é só mais um saco de sofrimento que a pessoa carrega nas costas.
Eu: E no fim parece até engraçado: quanto mais alguém corre atrás da felicidade, mais se condena ao sofrimento que ela própria construiu.
Silvano: Bonito isso. Sofrer pra ser feliz. Correr pra ficar parado. A felicidade virou o maior traficante de sofrimento que existe.
Eu: Mesmo a morte perdeu seu peso. Até a dor virou mercadoria: se não servir pra gerar clique, não serve pra nada. Fédida já alertava que sem tempo pra elaboração, a dor vira uma depressividade muda (GREEN, 2012).
Silvano: É por isso que eu falo: o social? Isso aí é uma miragem. Talvez sejamos apenas restos de uma materialidade que ainda sabia o que era morrer.
Eu: Nietzsche já desconfiava dessa esperança em narrativas (NIETZSCHE, 1873). Hoje o que temos é só a repetição automática do mesmo, embalado como se fosse novidade.
Silvano: Bonito é o som da ferrugem roendo o último portão. Bonito é o silêncio depois da queda. Só na falha é que alguma coisa ainda respira.
Eu: Talvez seja como Slavoj Žižek fala: defender as causas perdidas não é nostalgia, é ato político (ŽIŽEK, 2011). Defender o que já foi derrotado é afirmar que ainda há algo para ser dito, mesmo que ninguém queira ouvir.
Silvano: E no fim, é o nada falando com o nada. É a areia voltando pro vento. Mas é o nada dizendo: 'eu estive aqui'. Mesmo que ninguém escute.
Referências
HAN, Byung-Chul. Topologia da Violência. Petrópolis: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. O que é Poder. Petrópolis: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2017.
GREEN, André. Por que André Green? Uma psicanálise contemporânea na atualidade da clínica. Jornal de Psicanálise, v. 45, n. 83, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. 1873.
ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.
Escrito por:
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP: 06/172551
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