Da Escola ao Feed!
Resumo: Pretendo examinar, em primeira pessoa, a promessa de “regulamentar” o ambiente digital infantil — das novas Contas para Adolescentes do Instagram ao Projeto de Lei 2630/2020 — mostrando por que cada tentativa tropeça em velhos impasses: a transformação da ferramenta em vitrine, o narcisismo primário exposto a um feed global e a captura do cuidado pelos algoritmos. Retomo Freud, Winnicott, Illich e autores contemporâneos para argumentar que nenhuma norma terá êxito enquanto pais e filhos forem co-atores no mesmo palco de métricas.
1 | Introdução: da Escola ao Feed
Começo lembrando que a história da infância sempre foi atravessada por dispositivos de controle: das primeiras leis de imprensa no século XIX, passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), até o Marco Civil da Internet (2014). Hoje, a discussão no Congresso gira em torno do PL 2630/2020, ainda sem consenso apesar de tramitar há quatro anos . Ao mesmo tempo, cem dias atrás, mais de 200 personalidades brasileiras lançaram um manifesto pedindo urgência na regulação das redes sociais .
2 | Ferramenta, Utensílio e Autoridade Algorítmica
Heidegger descrevia o instrumento que “desaparece” no gesto de uso, mas no universo das plataformas o oposto ocorre: o aplicativo persiste, pedindo cliques e stories. Ivan Illich alertou que, quando as ferramentas deixam de ampliar a autonomia para impor fluxos industriais, viram sistemas que colonizam necessidades (ILLICH, 1973) . Quem define então o que vale? Clay Shirky chamou esse poder de autoridade algorítmica — a confiança cega no ranqueamento automático, já discutida no direito brasileiro à luz da proteção de dados . Byung-Chul Han acrescenta que, na Sociedade da Transparência, a vida ganha valor apenas quando convertida em visibilidade contínua .
3 | Narcisismo Primário sob Holofotes Digitais
Freud definiu o narcisismo primário como fase em que o bebê investe toda libido em si mesmo. O problema é quando esse estágio se prolonga num feed que exige aplauso de estranhos — hoje bem antes dos 8 anos, segundo revisões recentes sobre narcisismo infantil . Pais participam ativamente desse espetáculo: o sharenting virou fragrância de status que rende contratos publicitários e curtidas, mas já preocupa juristas e psicólogos pela violação da privacidade e pelos riscos à saúde mental da criança .
4 | A Promessa de Proteção do Instagram — e suas Brechas
Em setembro de 2024, a Meta passou a migrar perfis de 13 a 17 anos para a Conta de Adolescente, restringindo DMs e exigindo aval dos responsáveis para alterar filtros de conteúdo . A versão europeia, lançada em janeiro de 2025, inclui modo-soneca noturno e alertas após 60 minutos de uso . Na retórica corporativa, isso “devolve tranquilidade aos pais”; na prática, transfere ainda mais metadados familiares para o Family Center, reforçando a modelagem comercial do lar. Especialistas destacam que esses dashboards não impedem a criação de contas clandestinas e podem até agravar conflitos parentais .
5 | Pais Performers, Filhos Monitorados
Danah boyd mostrou que as redes produzem colapsos de contexto: o post do pai cuidadoso é visto pelo RH da empresa, pelos avós e pelos próprios filhos, exigindo uma coreografia de perfeição contínua . Resultado? Para provar responsabilidade, adultos expõem o cuidado, alimentando o mesmo mercado que pretendem regular. Quando o infante internaliza que seu valor depende de “likes”, prolonga-se o narcisismo primário e mina-se o estar-só que Winnicott considerava fundamental à maturidade emocional .
6 | Dificuldades Históricas e Atuais da Regulação
1. Lentidão legislativa — enquanto o PL 2630 avança a passos curtos, as plataformas implementam autorregulação cosmética, moldando o debate público antes da lei .
2. Assimetria informacional — legisladores dependem de dados que só as próprias empresas detêm.
3. Economia da atenção — qualquer regra que reduza tempo de tela enfrenta resistência de um modelo cujo lucro nasce do scroll infinito.
4. Universalização do sharenting — normas que limitam a exposição infantil colidem com o direito (e o desejo) dos pais de performar identidade digital.
5. Recomendações de saúde não atendidas — a Sociedade Brasileira de Pediatria segue orientando zero tela até 2 anos e, mesmo assim, 70 % das famílias permitem uso diário .
7 | Considerações Finais
Como psicólogo, concluo que a verdadeira proteção não virá apenas de filtros ou de PLs: exige restaurar espaços de invisibilidade onde a criança possa experimentar frustração e criatividade sem se converter em conteúdo. Regulamentar é necessário, mas insuficiente se não reconhecermos que pais e filhos são reféns do mesmo circuito de visibilidade. Precisamos de políticas públicas que limitem a coleta de dados, de educação algorítmica nas escolas e, sobretudo, de coragem para desligar a câmera — devolvendo à infância o direito de não “performar” antes de existir.
Referências:
BOYD, Danah. É complicad o: as vidas sociais dos adolescentes em rede. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
COLTRI, F. Exposição dos filhos nas redes sociais exige limites e cuidados. Jornal da USP, 2020. Disponível em: https://l1nq.com/yTZXV. Acesso em: 29 abr. 2025.
FÓRUM. Mais de 200 personalidades lançam manifesto pela regulamentação das redes sociais. 24 abr. 2025. Disponível em: https://revistaforum.com.br. Acesso em: 29 abr. 2025.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GALILEU. Sharenting ameaça saúde mental das crianças, 15 abr. 2025. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com. Acesso em: 29 abr. 2025.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
IBDFAM. Sharenting: especialistas avaliam riscos da exposição infantil nas redes sociais. 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br. Acesso em: 29 abr. 2025.
ILLICH, Ivan. Ferramentas para a convivialidade. Petrópolis: Vozes, 2009.
META. Apresentando a nova Conta de Adolescente do Instagram. 18 set. 2024. Disponível em: https://about.fb.com/br/news. Acesso em: 29 abr. 2025.
PROJETO DE LEI 2630/2020. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 29 abr. 2025.
SBP – SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. Menos telas, mais saúde: atualização 2024. Rio de Janeiro: SBP, 2024.
SHIRKY, Clay. Autoridade algorítmica e transformação da confiança. In: FERREIRA, A. J. (org.). Proteção de dados e algoritmos autônomos. Lisboa: Universidade Nova, 2022.
WINNICOTT, Donald. A capacidade de estar só. In: ____. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: LTC, 1975.
(Demais referências disponíveis mediante solicitação.)
Escrito por José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP: 06/172551
Canal no YouTube: @maispertodaignorancia
#maispertodaignorancia
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