Avançar para o conteúdo principal

Da dupla transferência ao duplo algoritmo: o eu sem alteridade na era dos metadados:



Da dupla transferência ao duplo algoritmo: o eu sem alteridade na era dos metadados:

Introdução:

Vivemos num tempo em que a subjetividade se tornou uma mercadoria e o sofrimento, um dado
estatístico. A clínica, que por tanto tempo foi o espaço privilegiado da escuta e da elaboração,
agora se vê ameaçada por um discurso que transforma o sintoma em funcionalidade. O desejo, que
desde Platão se funda na falta, é capturado por sistemas que se antecipam ao próprio sujeito,
oferecendo prazer imediato, respostas prontas, diagnósticos padronizados.
Esta transformação, no entanto, não é aleatória. Ela obedece a uma lógica de mercado. O mesmo
sistema que produz a ansiedade contemporânea - alimentada por algoritmos, métricas e metas de
desempenho - também oferece os produtos que prometem aliviá-la. E assim se fecha um ciclo onde
o eu, longe de se elaborar na contradição e no encontro com o outro, passa a se moldar dentro de
prateleiras discursivas, embalado como um produto pronto para o consumo.
Diante disso, é urgente retomar algumas chaves da psicanálise para pensar o que está em jogo. A
tensão primordial entre pulsão e civilização, como formulada por Freud; a noção de ego auxiliar e
dupla transferência, segundo André Green; a ideia de captura inconsciente por metadados, como
alerta Susana Zuboff; e, ainda, a crítica de Yuval Harari à dissolução moral diante da hipertrofia
tecnológica. Todos esses elementos convergem para uma questão central: que tipo de sujeito
emerge quando a escuta é substituída por cálculo?

1. O eu entre prazer e desejo: a tensão freudiana diante do colapso algorítmico
Durante milhares de anos, a subjetividade humana foi moldada por uma tensão essencial: o
embate entre as pulsões de prazer e as exigências do processo civilizatório. Como Freud descreve
em O mal-estar na cultura, é nesse conflito que nasce o eu. A partir desse atrito entre o que se quer
e o que se pode, o sujeito constrói suas elaborações - intelectuais, artísticas, éticas.
No entanto, essa tensão parece ter se transformado radicalmente. No cenário atual das redes
discursivas, o eu não mais se forma na falta, mas se organiza em torno da satisfação imediata. O
prazer se sobrepõe ao desejo. Mas o paradoxo é que, quanto mais o eu busca prazer, mais ele
tende a sofrer. Isso porque o prazer, por definição, não é sustentado - ele exige renovação
constante, substituição, atualização. E o sujeito, ao não encontrar um tempo para elaboração da
falta, mergulha num ciclo de repetições que produz sofrimento ainda mais intenso.
A busca por prazer nos espaços mediáticos se dá sem mediação simbólica, e, quando a falta
insiste, ela não é reconhecida como motor de desejo, mas transformada em um mal-estar adicional,
hiperexpresso em forma de discurso - muitas vezes fragmentado, repetitivo, incapaz de produzir
sentido. O resultado é um eu cada vez mais esvaziado da experiência da falta, e cada vez mais
capturado por um prazer sem tensão, sem elaboração, sem alteridade.

2. André Green, ego auxiliar e a impossibilidade da escuta algorítmica

Para André Green, o ego auxiliar é um operador essencial na clínica. É o outro que sustenta,
acolhe, permite que o sujeito possa se apoiar temporariamente para elaborar sua dor, simbolizar
seus afetos e reorganizar o que o atravessa. Essa função é relacional, pulsante e sempre
atravessada pela presença. É um outro que escuta, e justamente por escutar, não responde de
forma automática - sustenta o vazio, o silêncio, a angústia.
O que acontece quando essa função é delegada a um algoritmo? Não há ego auxiliar. Não há
presença. Não há escuta livre. O que há é uma captação de dados, uma redução do sofrimento
àquilo que pode ser processado. O algoritmo, ainda que limitado pelas mesmas leis físicas de
tempo e espaço, não compartilha a experiência do corpo, da história, dos afetos. Ele opera sem
tempo, sem espera, sem vínculo.
Essa fragilidade da escuta real é ainda mais preocupante quando observamos a formação do eu
desde a infância. Cada vez mais crianças constroem sua subjetividade dentro de ambientes
mediados pela tecnologia, em espaços onde o outro - que deveria tensionar, frustrar, diferir - é
substituído por um reflexo adequado, editável, obediente à expectativa. Isso cria um eu regredido,
não no sentido patológico, mas em sua constituição simbólica: um eu que não encontra resistência,
que não se depara com o limite do outro real, e que, por isso, não precisa elaborar. A estrutura
tecnológica, ao se tornar onipresente desde os hábitos mais iniciais, colabora diretamente com
essa dissolução da alteridade, afetando profundamente a formação psíquica e emocional das
novas gerações.

3. O inconsciente entre discurso e dado:
os metadados como captura da falta
Freud nos ensinou que o inconsciente se expressa, entre outras formas, no discurso. Lacan
radicaliza essa ideia ao afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem - ou seja, ele
se manifesta, tropeça, escapa, mas sempre fala. Mesmo o silêncio, mesmo o lapso, mesmo o
equívoco carrega em si uma inscrição do desejo. Porém, para que essa fala inconsciente tenha
lugar, é preciso tempo, espaço e um outro que escute.
No entanto, o que temos hoje é uma captura algorítmica do discurso - não para escutá-lo, mas para
decodificá-lo. Como alerta Susana Zuboff em A Era do Capitalismo de Vigilância, essa captura se
dá por meio dos metadados, que funcionam como uma leitura inconsciente daquilo que o sujeito
diz, faz e sente. Mas ao contrário da escuta analítica, que se abre ao enigma e ao equívoco, o
algoritmo procura sentido direto, previsibilidade, antecipação.
Assim, o que está em jogo não é apenas uma vigilância informacional. É uma captura pulsional. Os
algoritmos não apenas observam o que o sujeito faz, mas tentam prever o que ele fará - e, pior
ainda, moldar esse futuro com base em padrões. O desejo, que nasce da falta, é substituído por
demandas que nascem da oferta. O sujeito deixa de desejar para consumir. E sua própria
discursividade passa a ser um reflexo do que já foi previsto para ele.
Além disso, a associação livre - essa base fundamental do método analítico - hoje está
profundamente atravessada por um eu discursivo moldado pelas redes mediáticas. Não se fala
mais a partir de si, mas a partir do que se espera ouvir, do que será aceito, do que será curtido. É
uma fala adaptada, e por isso mesmo, muitas vezes, sem desejo.

4. Harari, moralidade e o outro dissolvido: entre a liberdade e a programação

Yuval Harari nos alerta para um fenômeno inquietante: a erosão da moralidade liberal no exato
momento em que a humanidade enfrenta os maiores desafios tecnológicos de sua história. Em 21
Lições para o Século 21, ele mostra como a fusão entre biotecnologia e algoritmos está deslocando
as decisões humanas para sistemas automatizados, capazes de vigiar, prever e moldar
comportamentos - não apenas coletivos, mas íntimos.
Esse deslocamento tem um custo subjetivo profundo. A moralidade, tal como foi historicamente
construída, exigia tensão. Exigia conflito interno, escolha, responsabilidade, contradição. Mas os
algoritmos não operam com contradições - eles calculam. E, ao fazê-lo, acabam esvaziando o
campo da escolha. Em vez de decidir entre alternativas morais, o sujeito é cada vez mais
conduzido por caminhos otimizados por dados. Não há espaço para o dilema, apenas para a
adequação.
Contudo, há algo que Harari parece não considerar com a devida profundidade: o fato de que,
mesmo em um sistema de controle total, o mal-estar não desaparece. Como já advertia Freud, o
Criador - seja ele Deus, natureza ou cultura - não levou em conta a felicidade da criatura. Uma gota
de angústia, de descompasso, de tensão, sempre restará. E é justamente essa fissura que impede
que o sujeito seja totalmente absorvido pela lógica algorítmica.
Estamos vivendo essa contradição agora: mesmo cercados por tecnologias que prometem conforto,
eficiência e satisfação, os níveis de ansiedade, depressão e vazio só aumentam. A estrutura
psíquica não se deixa capturar por completo. Ela resiste - silenciosa, sintomática, pulsional. E é aí
que talvez ainda resida uma fresta de liberdade.

Conclusão: 

A fresta da angústia como resistência
Se o desejo nasce da falta, e a subjetividade se constitui no embate com o outro, o tempo atual
parece operar numa direção contrária: anestesiar a falta e dissolver a alteridade. A tecnologia
algorítmica, ao antecipar a vontade do sujeito e moldá-la em padrões de consumo e
comportamento, cria uma ilusão de completude que sufoca o desejo. O eu, ao invés de se construir
na tensão e na contradição, passa a ser formatado por expectativas de prazer imediato,
reconhecimento digital e ajustamento funcional.
André Green já nos alertava para os riscos de um eu sem outro real, sem escuta, sem elaboração.
Freud, por sua vez, apontava que o sofrimento é inevitável - não por falha da civilização, mas
porque a constituição mesma do sujeito carrega uma angústia estrutural. Essa angústia, porém,
pode ser produtiva. Ela pode ser espaço de criação, de simbolização, de encontro.
Mesmo que a clínica esteja ameaçada pela lógica do desempenho e da padronização, ela ainda
pode - e talvez precise - sustentar essa fresta. Um lugar onde a escuta não seja para corrigir, mas
para escutar; onde o sintoma não seja erro, mas linguagem; onde o desejo não precise ser
traduzido em dado, mas reconhecido em sua falta.
Porque, apesar de tudo, a criatura ainda sofre. E esse sofrimento, longe de ser falha, talvez seja a
única brecha por onde algo verdadeiramente humano ainda possa atravessar.

Referências:
FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Obras completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GREEN, André. O discurso vivo: uma concepção psicanalítica do afeto. São Paulo: Escuta, 2005.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Por: José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignoranci

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...