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Adolescência: a brutalidade como última linguagem



Adolescência: a brutalidade como última linguagem

Na série Adolescência, o plano-sequência não é apenas recurso técnico — é denúncia ética. Jamie, o garoto de treze anos acusado de um assassinato brutal, é o corpo onde se inscreve um discurso que a sociedade adulta terceirizou há muito tempo. Um discurso digital, fragmentado, sem elaboração simbólica, onde o desejo é substituído por algoritmos e a dor vira conteúdo.

Byung-Chul Han nos alerta para a extinção da negatividade: vivemos numa era onde tudo precisa ser positivo, rápido, visível. Não há mais espaço para o recuo, para o recalque, para o silêncio elaborativo. E Freud, em seu modelo pulsional, já nos dizia: a cultura é feita a partir da tensão, do recalque e da sublimação. Sem isso, não há elaboração — só descarga. Sem espaço para o desejo, resta apenas o ato.

É aqui que Fédida entra: o trauma não simbolizado, não escutado, não elaborado, retorna no real — e muitas vezes como violência. Jamie não agiu de forma gratuita. Ele performou, com brutalidade, o que ninguém quis escutar: a falência de um modelo de educação que troca presença por funcionalidade, vínculo por conectividade, afeto por Wi-Fi.

A chamada “educação digital” não é educação. É terceirização afetiva. O adolescente não aprende a elaborar — aprende a reagir. E reage com os mesmos códigos que os adultos entregaram a ele, sem mediação, sem filtro, sem cuidado. O problema não é a tela. É o silêncio que ela encobre. E quando esse silêncio se rompe, não é com palavras. É com sangue.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FÉDIDA, Pierre. O ato ausente: ensaios de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.

FREUD, Sigmund. O ego e o id (1923). In: FREUD, S. Obras completas – volume 16: Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, S. Obras completas – volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Enio Paulo Giachini. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2018.

Netflix. Adolescência. Direção: Philip Barantini. Reino Unido: Netflix, 2025. Série de TV (4 episódios).



Escrito por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância
 

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