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A Terapia Algorítmica e o Funeral do Recalque


A Terapia Algorítmica e o Funeral do Recalque


Vivemos uma era curiosa — talvez cômica, talvez trágica. Uma era em que a dor precisa caber em 280 caracteres, o desejo deve ser monetizável, e a angústia, se não gerar engajamento, é ignorada pelo algoritmo. Me disseram que agora temos terapeutas digitais. IAs que acolhem, sugerem e “escutam”. E o melhor: nunca dormem, nunca atrasam, e jamais interpretam de um jeito que te deixe desconfortável. Um sonho, não?
Mas vamos com calma. Suponha que alguém, perdido em sua existência instagrâmica, resolva procurar ajuda. Vai até seu chatbot favorito e desabafa: “Sinto um vazio”. A IA, rápida e prestativa, responde: “Você já tentou mindfulness e uma playlist de lo-fi beats?” A pergunta que me assombra é: de qual vida esse sujeito está falando? Da sua materialidade concreta ou da sua performance digital cuidadosamente curada?

A IA só tem acesso ao discurso midiático, ao “eu funcional”, como nos alertou Byung-Chul Han (2017), aquele que performa sob a égide da positividade compulsória. Não há espaço para recalque, sublimação ou elaboração — apenas para a resposta imediata que evite o abismo da dúvida.
E duvidar, hoje, é quase um crime contra o algoritmo.
O problema não é a IA. É o espelho que ela nos oferece. Um reflexo liso, onde não há falha, hesitação, silêncio. E sem silêncio, não há escuta. Sem escuta, não há análise. Sem análise... bom, há conteúdo.

E isso é o que parece importar agora: conteúdos terapêuticos, emoções filtradas, saúde mental como serviço por demanda. Mas, veja bem, a clínica não é conteúdo. Ela é tensão, tempo, tropeço. É alguém diante de alguém, em carne, voz e falta. E isso, minha cara IA, você ainda não consegue simular — felizmente.

A ironia final é essa: quem está tentando curar o sujeito com IA esquece que o que mais falta hoje é justamente o sujeito. E talvez, no fim das contas, a IA não destrua a psicanálise. Mas ela pode, sim, escancarar o quanto a gente já desistiu dela.

Referências:

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D'Água, 1991.

 BYUNG-CHUL HAN. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
 FREUD, Sigmund. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

TELLES, Sérgio. A inteligência artificial vai acabar com a psicanálise? Valor Econômico, 19 abr. 2025. Disponível em:
 https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2025/04/19/a-inteligencia-artificial-vai-acabar-com-a-psicanalise.ghtml. 
Acesso em: 21 abr. 2025.

Escrito por José Antônio Lucindo da Silva
 CRP: 06/172551
 Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância


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