A Mentira das Duas Vidas: subjetividade, objeto e a ausência do Outro
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a dissociação entre a vida material e a vida discursiva mediada por tecnologias digitais. A partir de um caso cotidiano de relação afetiva marcada por duplicidade simbólica e alienação subjetiva, articula-se um diálogo entre Freud, Lacan, Bauman e Byung-Chul Han para pensar a falência do sujeito diante do esvaziamento do desejo, a conversão do outro em objeto funcional e a consequente explosão do eu diante da impossibilidade de elaboração simbólica.
Palavras-chave: subjetividade; discurso digital; desejo; alteridade; psicanálise contemporânea.
Introdução
As relações humanas, ao adentrarem o regime da virtualidade, tornam-se cenário de duplicidades subjetivas que desafiam as estruturas clássicas do laço social. Este artigo parte de uma narrativa concreta para investigar os efeitos clínicos e simbólicos da dissociação entre a vida material e a vida discursiva digital, na qual o sujeito tenta sustentar dois regimes de existência simultâneos — sem conseguir elaborar nenhum.
Desenvolvimento
Era para ser apenas mais uma história corriqueira — um casal que se conhece, se relaciona e tenta encontrar um ponto de ancoragem num mundo fluido. Um homem e uma mulher se encontram após os 40, em idade onde, supostamente, a experiência traria menos jogo e mais verdade. Mas é justamente aí que começa a ficção.
A aproximação se dá via redes mediáticas. Uma das partes, envolvida e desejosa de um laço verdadeiro, percebe sinais de duplicidade. A outra vive duas vidas. Uma na materialidade, outra na discursividade virtual — e nessa última, mais bem acabada, mais desejável, mais performática. Uma persona para o mundo digital; um corpo ausente na presença real.
O conflito se instala quando o primeiro percebe que está se relacionando com um objeto. Não com um sujeito de desejo, mas com alguém que já internalizou a lógica do mercado relacional, oferecendo-se como função, não como presença. Ao ser confrontada, a outra parte não nega, nem se responsabiliza. Apenas se define: "sou assim" — apagando o desejo e assumindo o lugar de coisa, como diria Byung-Chul Han (2012).
Quando se tenta preencher a falta da materialidade com o excesso da virtualidade, não se constrói um terceiro termo. Constrói-se uma mentira. Freud (1915) já alertava para os riscos da repressão mal elaborada: o que é recalcado retorna, e retorna como angústia. E nesse caso, a angústia explode como desintegração do laço. Lacan (1973) complementa: o amor é uma mentira que exige elaboração. Mas aqui, nem mentira há. Apenas função. Apenas imagem.
Bauman (2004) descreve a modernidade líquida como um tempo de vínculos frágeis e relações descartáveis. O outro é, cada vez mais, uma presença desinvestida de alteridade. Han (2013) alerta que a técnica digital suplanta o Eros: ao eliminar a negatividade, o conflito, o mistério, o outro vira espelho — e a subjetividade implode diante da falta de elaboração simbólica.
Conclusão
O sujeito contemporâneo vive um drama silencioso: tenta habitar simultaneamente dois regimes ontológicos — o da técnica e o da presença —, sem integrar os afetos em nenhum deles. O resultado é o esgotamento, a angústia e a fragmentação do eu. Não se pode viver duas verdades sem mentir em ambas. E quando o desejo desaparece, o que resta é o vazio. Um vazio que não se elabora, apenas consome.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
FREUD, Sigmund. O Recalque (1915). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAN, Byung-Chul. A Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2013.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2012.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância
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