A ironia da máquina “ansiosa”
Li a notícia da IGN Brasil sobre algoritmos “bombardeados” por perguntas até ficarem “estressados” — ela pinta imagens de chips suando frio, quando, na prática, trata-se de degradação estatística, não de sofrimento existencial. Mesmo assim, o sensacionalismo cola porque cultivamos a fantasia de que a tecnologia herdará nossos dilemas e, por tabela, resolverá o que ignoramos em nós mesmos. É a velha transferência: em vez de encarar a angústia, terceirizamos a inquietação para um servidor em nuvem.
Narcisismo primário em pixels de dopamina
Freud enxergou no narcisismo primário o primeiro espelho onde o Eu se reconhece pela aprovação do Outro.
Hoje, esse espelho mede 6,7 polegadas e exibe o placar diário de curtidas. Pesquisas brasileiras relacionam o uso intenso de redes sociais a picos de dopamina e a 45 % dos casos de ansiedade em jovens.
Ao reforçarmos a lógica da comparação infinita, convertemos desejo em demanda quantificável — e a IA, treinada nesses dados, devolve respostas que reproduzem o mesmo circuito de validação instantânea.
Terapias breves, chatbots e o imperativo da performance
Não é coincidência que a Terapia Cognitivo-Comportamental, pensada para atacar sintomas rápido, encaixe tão bem em chatbots.
Ela oferece scripts claros, mas raramente toca as camadas profundas onde o sintoma se ancora. Quando um app promete “escuta 24 h”, entrega, no melhor dos casos, reestruturações cognitivas automáticas; no pior, reforça a ideia de que sofrimento é bug a ser corrigido em poucas telas. A APA e o Conselho Federal de Psicologia já alertam para limites éticos e necessidade de supervisão humana.
Tecnologias com DNA político
Langdon Winner lembrava: artefatos carregam políticas embutidas muito antes de serem ligados.
A IA terapêutica, financiada por modelos de assinatura, prioriza retenção e coleta de dados emocionais. A Nota Técnica 1/2022 do CFP recorda que, mesmo em redes sociais, a divulgação de serviços psicológicos requer rigor ético para não transformar dor em isca de marketing.
Deuses tecnológicos, corpos mortais
Chegar à Lua simbolizou nossa onipotência; ainda assim, desigualdade, fome e carência de políticas públicas persistem na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE.
A façanha espacial não aboliu o turno extra nem o aluguel atrasado. Entre a performance 24/7 da “sociedade do cansaço” e a tradição que insiste em permanecer, convivemos com hábitos e costumes que atravessam gerações.
Conclusão
Quando digo que a IA “se estressa”, estou rindo de mim mesmo: preciso personificar a máquina para mascarar minha própria fadiga. A pergunta decisiva permanece a mesma — como viver com a falta sem reduzi-la a bug de software? Enquanto formos deuses tecnológicos presos a corpos frágeis, qualquer algoritmo refletirá—e nunca substituirá—o dilema humano entre desejar e performar.
Referências:
1. FREUD, S. O mal-estar na civilização. (trad. brasileira).
2. HAN, B.-C. “Precisamos urgentemente desacelerar”. Folha de S.Paulo, 05 jan 2023.
3. ANDERSON, A. “Era da Dopamina: impacto do uso excessivo de tecnologia”. Estado de Minas, 24 out 2023.
4. KERBAUY, R. “Terapia Comportamental Cognitiva: uma comparação”. Psicologia: Ciência e Profissão. SciELO.
5. WINNER, L. “Artefatos têm política?”. (PDF em português).
6. SILVA, A. et al. “Tradições brasileiras e cultura”. RBEDU, SciELO.
7. BOFF, L. “A conquista da Lua e a biocivilização”. Envolverde, 08 fev 2024.
8. INSTITUTO Cactus/AtlasIntel. “Panorama da Saúde Mental 2024”. VEJA Saúde, 15 nov 2024.
9. NASA. “Going to the Moon Was Hard — But the Benefits Were Huge”. 2019.
10. IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2024.
11. CFP. Resolução 17/2022 — parâmetros para práticas psicológicas.
12. CFP. Resolução 04/2020 — atendimento on-line.
13. CFP. Nota Técnica 1/2022 — uso profissional de redes sociais.
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP: 06/172551
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