A esperança como contenção: uma crítica à positividade performática contemporânea
Autor: José Antônio Lucindo da Silva | CRP: 06/172551
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RESUMO:
Este artigo propõe uma análise crítica de uma frase comum na contemporaneidade: "Espero que você encontre tempo para ser feliz, não apenas forte." À primeira vista empática e acolhedora, essa formulação reproduz um discurso ideológico de contenção afetiva. Em primeira pessoa, exploro as implicações clínicas, existenciais e materiais desse enunciado, mostrando como ele atua como um amortecedor simbólico da angústia, impedindo o sujeito de elaborar sua dor e inscrever seu desejo. Dialogo com Freud, Fédida, Kierkegaard, Camus, Byung-Chul Han e Spinoza, articulando a esperança como uma paixão triste e a felicidade como mercadoria. A crítica é situada no campo psicanalítico e filosófico, mas parte da experiência concreta do trabalho, da exaustão e do tempo esvaziado de sentido.
Palavras-chave: esperança, felicidade, tempo, psicanálise, luto, positividade tóxica
INTRODUÇÃO:
A frase "espero que você encontre tempo para ser feliz, não apenas forte" tornou-se recorrente nos finais de semana, embalada por imagens suaves e compartilhada nas redes sociais como gesto de cuidado. No entanto, ao deparar-me com essa frase, algo em mim se inquieta. O que parece ser um alento se revela, sob análise crítica, um imperativo travestido: seja feliz, no tempo permitido, para continuar funcionando. Este artigo é fruto desse incômodo.
1. A FORÇA COMO MERCADORIA E A FELICIDADE COMO INTERVALO
A força, hoje, é sinônimo de funcionalidade. Não é potência trágica, mas resiliência produtiva. A felicidade, por sua vez, é oferecida como recompensa — um alívio performático de sábado ou domingo. A frase não contesta o sistema que exige força contínua; ela apenas deseja que reste algum tempo para parecer feliz. Trata-se de uma ironia cruel: o tempo da felicidade já está capturado pela própria exaustão que a força exige durante a semana.
2. KIERKEGAARD: A VIDA VIVIDA PARA TRÁS
Kierkegaard nos alerta que a única vida compreensível é a que ficou para trás. A frase em análise ignora esse passado, propondo uma felicidade projetada que nunca chega. Ela congela o tempo, impede o sujeito de refletir sobre sua história, e anestesia a possibilidade de angústia — que, segundo o filósofo, é a porta de entrada para a liberdade do eu.
3. FREUD: A FRUSTRAÇÃO COMO CONDIÇÃO DA EXISTÊNCIA
Freud afirma que o criador não levou em consideração a felicidade da criatura. A vida é atravessada por frustração e luto, e a função do psiquismo é justamente elaborar essa tensão. A frase atua como recalque: ela não permite que a dor emerja, oferecendo uma esperança sem elaboração. O resultado clínico é um sujeito exausto, fragmentado, culpado por não estar à altura da promessa de felicidade.
4. FÉDIDA: DEPRESSIVIDADE E TEMPO DO LUTO
François Fédida nos mostra que, quando o luto não encontra tempo psíquico para acontecer, instala-se a depressividade. A esperança performática impede o colapso necessário à elaboração. Ela fecha o tempo, não o abre. Ela consola, mas não cura. A frase repetida aos finais de semana funciona como um véu: protege o sujeito da queda, mas também o impede de desejar novamente.
5. CAMUS: O ABSURDO NÃO SE NEGA
Camus nos lembra que o absurdo da vida não se resolve, mas se enfrenta. Sua proposta não é a esperança, mas a revolta lúcida. Dizer "espero que você encontre tempo para ser feliz" é trair o absurdo — é oferecer uma compensação imaginária onde só caberia a afirmação trágica: "mesmo sem sentido, eu sigo". A frase, nesse contexto, colabora com a domesticação do real.
6. SPINOZA: A ESPERANÇA COMO PAIXÃO TRISTE
Para Spinoza, a esperança é uma paixão triste, porque nasce da ignorância das causas e da impotência diante do presente. Ela é sempre a espera de algo que não depende de nós. Por isso, a frase carrega um tipo de paralisia afetiva: não convida à ação nem à elaboração. Ela propõe a esperança como solução, mas o que oferece é contenção. Uma esperança sem desejo, sem carne, sem sujeito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O discurso que diz "espero que você encontre tempo para ser feliz" é, em sua aparência gentil, um dispositivo ideológico de contenção afetiva e existencial. Ele apazigua, normatiza, e impede a travessia do real. A esperança, nesse caso, não é abertura — é adiamento. A felicidade, não é vivência — é performance. E o tempo, não é vivido — é consumido.
É preciso recuperar o tempo da queda, do luto, do desespero. É nele que talvez ainda reste algo de verdade.
REFERÊNCIAS:
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. São Paulo: Record, 1995.
FÉDIDA, François. O luto: ensaios sobre a ausência. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, vol. 21.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Obras completas, vol. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Por: José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
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