Avançar para o conteúdo principal

A Dor Que Resta — Quando o Corpo Diz o que o Discurso Cala


A Dor Que Resta — Quando o Corpo Diz o que o Discurso Cala


Escrevo este texto não com o desejo de trazer respostas, mas talvez com a necessidade de sustentar aquilo que tem sido esquecido — o vivido. E não falo aqui de nostalgia. Nostalgia é marketing emocional, não existência. Falo do vivido mesmo: aquele que dói, que arranha, que cansa, que constrange. Aquele que, ironicamente, parece só ganhar legitimidade quando o corpo adoece.

Temos nos tornado especialistas em elaborar discursos. O sujeito contemporâneo fala de si com uma fluidez admirável, mas sem jamais tocar o que é. Vivemos em um tempo onde a subjetividade foi terceirizada ao algoritmo e a dor, se não for convertida em conteúdo, perde o direito de existir. A performance venceu. O eu virou vitrine.

Nesse cenário, a doença física parece, paradoxalmente, ser o último gesto autêntico de um corpo que grita: "Estou aqui!"
Não porque o corpo queira adoecer — que fique claro — mas porque talvez só a dor física seja hoje capaz de furar o ruído ensurdecedor da discursividade imediata. Quando a mente se virtualiza ao ponto de não mais reconhecer sua própria história, o corpo age. A febre é resistência. A exaustão é protesto. A dor é lembrança de que ainda existimos.

Winnicott dizia que a maturidade é a capacidade de estar só. Pois bem, experimentem estar sós hoje sem um aparelho na mão e saberão do que ele estava falando. A solidão que deveria ser espaço de elaboração virou falha de conexão. O silêncio foi substituído por notificações.
E o pensamento? Esse foi terceirizado para frases prontas de coaching: "conhece-te a ti mesmo" — mas nunca dizem a segunda parte: "e saiba que és mortal".

Fico me perguntando: se só existe vida vivida naquilo que ficou para trás, como sustentar uma identidade construída apenas por projeções de um futuro que não se encarna em nenhuma materialidade? O que me torna quem sou se tudo que vivi é descartado por não ser postável?

Na clínica, vejo sujeitos adoecendo não apenas pelo que sofrem, mas principalmente pelo que não podem mais elaborar.
A dor psíquica foi calada pela positividade tóxica, e o sofrimento virou falha de desempenho.
E, ironicamente, talvez o livre-arbítrio não tenha morrido — ele apenas foi deslocado: hoje somos livres para escolher entre formas diferentes de nos alienar.

Este texto não é um elogio ao sofrimento, mas uma tentativa de reconhecer que há uma sabedoria no corpo que a mente, domesticada pelo discurso, tenta ignorar.
A doença, por mais trágica que seja, pode ser a última forma de lembrar ao sujeito que ele ainda possui um corpo, uma história, uma ausência que dói — e, portanto, ainda está vivo.

Referências:

FÉDIDA, Pierre. Clínica da melancolia: Depressão e fenômenos psicossomáticos. São Paulo: Escuta, 2002.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo, CRP: 06/172551



Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...