A Angústia como Pedra: Uma Travessia Existencial entre Freud, Lacan, Fédida, Kierkegaard, Camus e Cioran
A Angústia como Pedra: Uma Travessia Existencial entre Freud, Lacan, Fédida, Kierkegaard, Camus e Cioran
Autor: José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
A angústia como matéria do ser
A angústia, ao contrário do que prega a lógica contemporânea da positividade, não é um defeito emocional nem um obstáculo ao bem-estar. Ela é, talvez, a expressão mais autêutica da condição humana. Enquanto a modernidade digital se empenha em higienizar os afetos, vendendo soluções rápidas para qualquer desconforto, a angústia persiste como um sinal irredutível do Real: ela não serve para nada, como diria Vera Iaconelli, mas está aí, atravessando o corpo e o tempo.
Freud: o recalque e a dor civilizatória
Freud, em O Mal-Estar na Civilização, já indicava que a cultura é edificada sobre o recalque das pulsões. Sem recalque, não há civilização. Mas também sem dor. A angústia é esse resto que emerge quando o desejo não encontra saída, mas também não pode ser esquecido. Hoje, porém, vivemos num mundo onde o recalque perdeu espaço para o excesso: tudo pode, tudo deve ser dito. Mas o sofrimento persiste, justamente por não haver mais tempo para elaborar.
Lacan: o toque do Real
Para Lacan, a angústia é o afeto que não engana. Ela surge quando a fantasia falha, quando o Simbólico — as palavras, os discursos, os signos — não dá conta do que fura o sentido. O Real irrompe, e com ele, a angústia. Nas redes sociais, o Simbólico se hipertrofia: hashtags, posicionamentos, narrativas, identidades. Mas a angústia fura isso tudo. Ela se apresenta no corpo, na insônia, na compulsão, na repetição que não cessa.
Fédida: a impossibilidade do luto
Pierre Fédida nos alerta que a depressividade é o resultado de um luto que não pode acontecer. E o luto é, antes de tudo, uma pausa. Um tempo de não-produção. Um tempo de ausência que hoje não é permitido. A cultura da performance exige continuidade. Não se pode cair, nem parar, nem faltar. E quando isso acontece, a angústia vira um ruído incessante, pois ninguém tem tempo para escutá-la.
Kierkegaard: a vertigem do possível
A angústia, para Kierkegaard, é a vertigem da liberdade. Diante da possibilidade, o ser humano vacila. Somos livres, mas não suportamos esse abismo. Por isso nos escondemos no conformismo, na rotina, no discurso alheio. Hoje, essa vertigem se apresenta como tédio, ansiedade difusa, necessidade de estar sempre conectado. Fugimos da angústia porque ela denuncia que nada está garantido.
Camus: carregar a pedra com consciência
Albert Camus, em O Mito de Sísifo, propõe que diante do absurdo da existência, resta-nos a consciência. Sísifo carrega a pedra eternamente. E mesmo assim, devemos imaginá-lo feliz. Por quê? Porque ele reconhece o absurdo, mas não desiste. A angústia é a nossa pedra. Carregá-la não é sinal de fracasso, é sinal de humanidade. O problema é quando tentamos fingir que ela não existe.
Cioran: a fidelidade ao desespero
Cioran diria que a angústia é a única companheira fiel. Ela está conosco antes mesmo da consciência, como uma sombra que nos precede. Ele rejeita a esperança porque sabe que ela é o disfarce de um futuro que não virá. E não é preciso gostar da angústia. Basta reconhecê-la. Dar-lhe lugar. Escutá-la como se escuta um trovão inevitável.
Conclusão: a angústia como sustentação
Em vez de fugir da angústia, talvez devêmos aprender a sustentá-la. Freud propôs: recordar, repetir e elaborar. Mas isso exige tempo. E tempo hoje é luxo. Por isso, insistir na angústia é também um ato político: recusar a solução imediata, recusar a positividade compulsória, recusar a distração como única resposta.
Sísifo, Freud, Lacan, Kierkegaard, Fédida, Camus e Cioran nos ajudam a perceber que a angústia não é o fim do caminho. Ela é o próprio solo que pisamos.
Referências
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. São Paulo: Rocco, 2009.
FÉDIDA, Pierre. O luto. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras psicológicas completas, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
IACONELLI, Vera. Para que serve a angústia? Folha de S.Paulo, 14 abr. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2025/04/para-que-serve-a-angustia.shtml
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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