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Throning: Como aprendi que até o amor virou commodity… e eu talvez também


Throning: Como aprendi que até o amor virou commodity… e eu talvez também

Confesso que não me espantaria se amanhã inventassem uma nova sigla para o amor: A.R.T., Affective Return on Investment — ou, em bom português, Retorno Afetivo sobre o Investimento. Afinal, parece ser disso que se trata quando observo as novas — ou velhas — dinâmicas afetivas disfarçadas de tendência. O throning, esse novo termo pop da Geração Z, nada mais é do que a boa e velha hipergamia, só que agora com filtro, ring light e algoritmo decidindo quem merece ser colocado no trono. E o mais curioso é que ninguém parece minimamente constrangido com isso. Ao contrário, virou pauta de aplicativo de namoro.

Segundo o estudo do Plenty of Fish — e veja como até o nome já sugere que somos apenas mais um peixe no cardume —, 27% dos jovens da Geração Z admitem ter sido vítimas do throning. Bonito, né? O amor, que um dia já teve seu valor simbólico, se transforma oficialmente em transação unilateral: você me dá visibilidade, eu te dou uma foto bonita pro Instagram. Só falta vir o contrato com cláusula de rescisão por perda de engajamento.

O mais irônico é perceber que isso é só o sintoma mais visível de um mal maior — aquele que Freud, em O Mal-Estar na Civilização (Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1974) já havia diagnosticado com uma precisão que me assusta: o sujeito civilizado paga o preço da renúncia pulsional e da frustração para viver em sociedade. O problema é que, agora, a frustração não serve mais pra nada. O desejo — esse motor do sujeito — foi substituído pela demanda. E demanda se resolve com consumo.

Aí, veja, não tem mais libido, tem curtida. Não tem mais o jogo simbólico do desejo pelo outro, tem estratégia de engajamento. Quem ganha é quem tem mais seguidor ou mais chance de me projetar. Não à toa, o estudo da Science Advances aponta que homens e mulheres buscam parceiros 25% mais desejáveis do que eles. A conta é simples: se eu posso usar o outro como espelho, quero o reflexo o mais bonito possível.

Herbert Marcuse, lá atrás, já avisava em O Homem Unidimensional (Marcuse, Herbert. O Homem Unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1973) que viveríamos uma era onde a cultura viraria ideologia, e o desejo, ferramenta de dominação. Pois bem, chegamos lá — ou melhor, estamos postando de lá. Hoje, o amor não emancipa mais ninguém; no máximo, rende um Reels com trilha sonora bonitinha.

Byung-Chul Han foi outro que tentou nos acordar do sono profundo da autoexploração. Em A Sociedade do Cansaço (Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015), ele já dizia que o sujeito contemporâneo se tornou vítima e algoz de si mesmo. E o que é o throning se não essa autoexploração consentida? Me deixo usar para depois poder usar alguém — e assim seguimos nessa cadeia alimentar afetiva, onde todo mundo é predador e presa ao mesmo tempo.

E não se enganem: no final desse jogo, ninguém sai ileso. Tatiana Paranaguá, ao falar dos vínculos fantasmas, já apontava que estamos criando relações que não existem fora da tela. E quando existem, são frágeis, descartáveis, líquidas — como bem colocou Zygmunt Bauman em Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos (Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004). O throning é só mais uma etapa dessa tragédia anunciada: uma relação que nasce funcional, vive como performance e morre antes mesmo do primeiro "eu te amo".

E o que sobra? A depressividade, claro — como diria Pierre Fédida em O Luto (Fédida, Pierre. O Luto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003). Porque não há tempo de luto quando o próximo "match" está a um clique de distância. Não há elaboração, não há perda. Só o vazio preenchido por um novo vazio. E seguimos, como diria Cioran — sempre ele —, desesperados demais para viver e lúcidos demais para morrer (Cioran, Emil. Breviário de Decomposição. São Paulo: Rocco, 2003).

No final, Stacy Thomson, fundadora do aplicativo Reddi, ainda tenta nos consolar: “a verdadeira satisfação está na autenticidade e no respeito mútuo”. Fofo, mas eu pergunto: quem, hoje, consegue ser autêntico sem parecer irrelevante? Ou melhor, quem está disposto a ser irrelevante?

Talvez, no fundo, o throning só escancare o que sempre fomos: criaturas desesperadas tentando parecer menos medíocres. A diferença é que agora temos wi-fi, filtro, e um algoritmo que entrega quem vale o trono — ou quem já deveria ter sido jogado na masmorra digital faz tempo.

E assim seguimos, monarcas de nós mesmos, sentados no trono de um castelo que desmorona a cada notificação.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

Cioran, Emil. Breviário de Decomposição. São Paulo: Rocco, 2003.

FÉDIDA, Pierre. O Luto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1974.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

PARANAGUÁ, Tatiana. Vínculos Fantasmas: A Fragilidade das Relações na Contemporaneidade. Rio de Janeiro: Appris, 2019.


José Antônio Lucindo da Silva CRP: 06/172551 joseantoniolcnd@gmail.com #maispertodaignorancia 

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