Avançar para o conteúdo principal

Renda mínima: alívio humanitário ou controle algorítmico da existência?



Renda mínima: alívio humanitário ou controle algorítmico da existência?

Por José Antônio Lucindo da Silva 

Nos últimos tempos, tenho escutado muito sobre a tal renda básica universal. E não, não estou falando de um experimento futurista em Marte, mas sim de uma proposta concreta para o nosso planeta cada vez mais automatizado e mediaticamente colonizado. Confesso: a ideia parece bonita — quem não gostaria de receber um valor mensal para viver, sem precisar se submeter à lógica brutal do mercado de trabalho?

Mas é justamente aí que reside a armadilha. Quando o sistema começa a dar dinheiro, o que exatamente ele está tomando em troca?

Parto de uma reflexão materialista, ancorada em Marx, onde compreendo que a base da nossa cognição não é neutra: ela é formada pelos meios de produção e de consumo. E hoje, os meios de consumo não apenas nos oferecem mercadorias — eles moldam nossos desejos, ditam nossos comportamentos e, sobretudo, organizam nossa subjetividade em torno de algoritmos. Nesse cenário, a renda mínima aparece não como emancipação, mas como uma espécie de “apoio técnico à manutenção do eu funcional”.

Não temos mais tempo para o desejo, como já alertavam Freud ou Lacan. O desejo exige elaboração, demora, tensão. Mas vivemos em um mundo onde o desejo virou demanda, e o eu, uma função algorítmica. É preciso responder, interagir, performar, manter-se atualizado, produtivo discursivamente. A performance subjetiva passou a valer mais que a ação material. E o algoritmo, ora, esse só pede uma coisa: que você continue clicando.

Assim, a renda mínima pode ser apenas o equivalente contemporâneo de pão e circo — só que agora com Wi-Fi. Ela mantém o sujeito vivo, engajado, opinativo, e, o mais importante: sob controle. A pergunta então não é se teremos dinheiro para comprar comida, mas se ainda seremos capazes de pensar por conta própria.

Porque se a nossa cognição está estruturada pelas plataformas digitais, o que resta da autonomia? Que tipo de liberdade pode existir se tudo já foi previamente capturado por discursos, métricas e tendências? A renda mínima talvez não seja a libertação do trabalho, mas a institucionalização da nossa irrelevância produtiva. Uma espécie de aposentadoria precoce para o desejo, substituído por curtidas e notificações.

Eu, particularmente, não quero viver numa distopia colorida com selo de "progresso humano". Prefiro continuar questionando — mesmo que isso já tenha virado também uma demanda de engajamento.



Referências

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


HARARI, Yuval N. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.


MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.


ROUDINESCO, Élisabeth. O Eu soberano. São Paulo: UBU Editora, 2021.


ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...