Quando o Exemplo Não Pode Ser Seguido: A Falência Simbólica dos Pais na Era da Performance Digital
Vivemos uma inversão histórica silenciosa, mas devastadora: a do adulto que já não pode mais sustentar o lugar simbólico de mediação e referência diante de seus filhos. Se outrora o adulto representava aquele que detinha o saber, a experiência e a capacidade de renunciar, hoje ele se vê tão refém da lógica da visibilidade quanto a própria criança que deveria educar.
O discurso moderno insiste na necessidade de se “impor limites” às crianças quanto ao uso das telas. Mas esse pedido carrega uma contradição central: o limite, na lógica psíquica, não é um mero comando ou proibição. O limite só existe se encarnado na figura daquele que o sustenta — o adulto. E é exatamente isso que falta.
Dentro da perspectiva freudiana, o limite nasce do recalque — ou seja, da capacidade do sujeito de renunciar a certas satisfações imediatas em nome de um laço social mais amplo. Esse recalque, fundamental para o processo civilizatório, é transmitido pelas figuras parentais: o pai ou a mãe como aqueles que sabem esperar, que sustentam a castração simbólica e mostram à criança que o desejo nem sempre poderá ser realizado.
Mas o que vemos hoje? Pais e mães compulsivamente conectados, correndo atrás da própria validação digital, performando a si mesmos diante das câmeras, transformando a insegurança — antes velada — em espetáculo público, inclusive para os filhos. A dependência que deveria ser apontada como risco ao desenvolvimento da criança se naturaliza no comportamento dos adultos.
Se a função simbólica do adulto é mediar o acesso da criança ao mundo e ensinar a lidar com a falta, o que sobra quando o próprio adulto não suporta mais a experiência da ausência? Quando ele mesmo não recalca nada, porque tudo precisa ser dito, mostrado, publicado e validado? A criança aprende pelo olhar, e o que ela vê é o pai e a mãe presos ao mesmo circuito pulsional: o prazer imediato do like, da exposição e do consumo da imagem.
Nesse cenário, a sublimação — caminho apontado por Freud como a possibilidade de elevar a pulsão a um nível social e criativo — também entra em colapso. A lógica da sublimação exige o tempo da elaboração, o deslocamento do desejo para atividades simbólicas — arte, ciência, cultura. Mas na era da performance digital, o tempo da elaboração cede lugar à resposta imediata, à exposição compulsiva, ao consumo de si mesmo como produto.
O adulto que deveria ser o representante da renúncia torna-se, paradoxalmente, o modelo da compulsão. E a criança, nesse espelho invertido, cresce sem um limite para internalizar, porque não há mais o que se inscrever como referência simbólica.
O drama é que o mercado sabe disso — e atua exatamente nessa brecha. Ele convoca o adulto à performance, à presença constante nas redes, não apenas como indivíduo, mas como pai, mãe, filho, trabalhador, consumidor. Tudo é conteúdo, tudo é mercadoria — inclusive a parentalidade.
O resultado é o que podemos chamar de colapso do simbólico: quando o tempo da experiência e da mediação cede lugar ao tempo da exposição e da repetição. O recalque, base do laço social, dá lugar à compulsão pela visibilidade. E, nesse cenário, falar em limite soa como um delírio moral, uma tentativa de resgatar algo que já não tem mais suporte na prática.
Talvez o mais trágico seja perceber que as crianças já sabem disso. Elas já veem — e muitas vezes verbalizam — que seus pais não conseguem se desconectar, não conseguem renunciar. E se o adulto não é mais capaz de sustentar a castração, quem poderá ensinar o valor da falta, da espera, da elaboração?
O que resta é um ciclo onde o superego contemporâneo não mais moraliza — ele cobra performance e presença. E a angústia que surge daí não é mais a culpa freudiana diante do desejo proibido, mas o desespero de não ser visto, de desaparecer da cena digital.
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Esse movimento pode ser lido à luz de Sigmund Freud em O Mal-Estar na Civilização (1930), quando aponta o recalque como condição para a vida em sociedade e como fonte de angústia humana. A modernidade digital, ao esvaziar o recalque e negar a função simbólica da falta, desloca o sofrimento para outro lugar: não mais o sofrimento por desejar o que não se pode ter, mas o desespero por não ser visto ou não performar o suficiente. Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço (2015), aponta essa virada: saímos de uma sociedade disciplinar para uma sociedade da autoexploração, onde o sujeito é empresário de si mesmo — e, aqui, podemos dizer, até de sua função parental.
Da mesma forma, Zygmunt Bauman (2007), ao falar sobre a liquidez das relações, antecipa esse esgarçamento do laço simbólico, onde nada mais é sólido ou duradouro, nem mesmo o papel dos pais como transmissores de cultura e experiência. E Pierre Fédida, em sua análise sobre a depressividade (1992), nos lembra que sem o tempo da elaboração e do luto, sobra a repetição vazia — exatamente o que se vê no comportamento digital contemporâneo, onde tudo se repete sem se transformar.
O desafio que se impõe, então, não é sobre "como impor limites", mas sobre "como resgatar o lugar simbólico do adulto" num mundo que não tolera mais a ausência, o silêncio ou o recuo.
E talvez a resposta — se é que há — não esteja mais em discursos sobre regras e limites, mas na coragem de encarar que o exemplo, hoje, não pode ser seguido porque o adulto também está perdido.
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Referências
Freud, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago.
Han, B.-C. (2015). A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.
Bauman, Z. (2007). Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
Fédida, P. (1992). O Luto e a Experiência da Perda. São Paulo: Escuta.
José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia @jose Antônio psico
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