O Ressentimento e a Indiferença: Entre a Ilusão da Liberdade e a Escravidão ao Outro
Introdução
O ressentimento é uma das forças psíquicas mais poderosas que estruturam a subjetividade humana. Ele não é apenas uma emoção passageira, mas um eixo que sustenta identidades, movimenta discursos e, paradoxalmente, aprisiona o sujeito naquilo que ele odeia. Ao longo deste artigo, proponho uma análise aprofundada sobre a lógica do ressentimento na contemporaneidade, sua relação com a construção do "eu" e a possibilidade da indiferença como libertação – ainda que esta última tenha um custo elevado.
Partindo de autores como Nietzsche, Freud, Lacan, Sartre e Ernst Becker, questiono até que ponto o ressentimento é um elemento inevitável da experiência humana e se a indiferença pode, de fato, ser um caminho viável para a liberdade. O paradoxo que emerge é inquietante: odiar o outro não liberta; pelo contrário, nos aprisiona ainda mais. E, no entanto, a maioria dos sujeitos se recusa a abrir mão desse ressentimento, pois ele se torna a única coisa que lhes dá sentido.
Afinal, qual é o verdadeiro preço da indiferença? Por que nos agarramos ao ressentimento mesmo quando sabemos que ele nos destrói? E, se o ressentimento nos define, ele não seria, então, uma forma distorcida de desejo?
O Ressentimento como Base da Identidade
Nietzsche já afirmava que o ressentimento é a base da moral dos fracos, daqueles que, incapazes de agir, constroem sua identidade sobre o rancor. O ressentido precisa do outro para continuar existindo, pois sua posição é definida não pelo que ele é, mas pelo que ele rejeita. Seu discurso não é afirmativo, mas reativo. Ele se coloca em constante oposição ao outro e, sem essa oposição, ele se dissolve.
Freud, por sua vez, nos ajuda a entender o ressentimento como um deslocamento de desejo. O inconsciente não opera por regras morais; ele deseja livremente. Mas o processo civilizatório exige repressão. Assim, o desejo não pode se realizar plenamente e se transforma em ressentimento. Esse ressentimento é a tentativa de punir simbolicamente aquilo que o sujeito gostaria de ter, mas não pode possuir.
A lógica é simples: eu odeio aquilo que desejo, mas não posso ter. O ressentimento, então, é uma forma distorcida de desejo, uma maneira de manter vivo aquilo que, em teoria, eu deveria rejeitar. Dessa forma, o sujeito ressentido não apenas mantém o outro presente em sua psique, mas se define a partir dele. Como Sartre diria, ele está em má-fé: ele se recusa a reconhecer que poderia escolher outro caminho, mas escolhe não escolher.
O Paradoxo da Indiferença: Liberdade ou Nova Prisão?
Se o ressentimento é uma forma de prisão, então a indiferença deveria ser a libertação. Mas essa libertação não acontece sem custos. A indiferença não é apenas um "deixar para lá", mas um rompimento com a estrutura psíquica que sustentava o "eu". Como Lacan aponta no estádio do espelho, o sujeito se reconhece no outro; ele é um reflexo daquilo que o outro lhe devolve. Assim, ao tornar-se indiferente, o sujeito abre mão desse reflexo, e isso pode ser angustiante.
Além disso, a indiferença é invisível. Enquanto o ressentimento se manifesta em discursos, reações e confrontos, a indiferença é uma ausência. Ela não gera engajamento, não cria pertencimento. O sujeito indiferente perde as conexões que antes sustentavam sua identidade, e esse isolamento pode ser visto como um custo alto demais.
Outro ponto fundamental é que a indiferença só pode ser validada pelo outro. O sujeito não pode afirmar que é indiferente, pois, se ele precisa declarar sua indiferença, isso significa que ainda está preso ao discurso do ressentimento. A verdadeira indiferença só pode ser percebida quando o outro, que antes causava incômodo, já não provoca mais nenhuma reação. Mas isso exige uma desconstrução profunda, que poucos estão dispostos a enfrentar.
O Ressentimento Como Produto da Contemporaneidade
Vivemos em uma era onde o ressentimento se tornou uma mercadoria. As redes sociais amplificam esse fenômeno ao criar ciclos de indignação e polarização constantes. O ódio engaja, gera curtidas, compartilha-se viralmente. A economia da atenção é alimentada pelo rancor, pois ele mantém as pessoas presas a narrativas de confronto e oposição.
Nesse sentido, a indiferença se torna um ato subversivo. Ela rompe com o ciclo do engajamento, com a necessidade de resposta, com a lógica da retroalimentação do ódio. No entanto, essa subversão não é fácil de ser praticada. A cultura digital é desenhada para nos manter envolvidos emocionalmente, e o ressentimento é uma das formas mais eficazes de garantir essa permanência.
Assim, a questão que se coloca é: a indiferença é uma resistência real ou apenas mais um ideal inatingível dentro da lógica contemporânea? Se o ressentimento é o combustível do sistema, será que alguém realmente pode se libertar dele?
Conclusão: O Verdadeiro Custo da Indiferença
Se o ressentimento é inevitável, então a indiferença é uma ilusão? Talvez. Mas a diferença entre os dois está no custo que cada um impõe ao sujeito. O ressentimento consome energia, prende o sujeito a narrativas que o mantêm refém do outro. A indiferença, por sua vez, exige um sacrifício: o abandono da própria identidade construída sobre a oposição.
O problema é que poucos estão dispostos a pagar esse preço. Afinal, sem ressentimento, sem uma narrativa de oposição, o que sobra? O vazio. E o vazio pode ser insuportável.
Por isso, a grande pergunta que fica não é se devemos escolher a indiferença ou o ressentimento, mas se estamos preparados para lidar com as consequências de qualquer uma dessas escolhas. No fim, talvez a verdadeira liberdade não esteja nem na indiferença, nem no ressentimento, mas na capacidade de reconhecer que ambos são apenas construções dentro de uma lógica maior que nos transcende.
Referências Bibliográficas
Nietzsche, Friedrich – Genealogia da Moral
Freud, Sigmund – O Mal-Estar na Civilização
Lacan, Jacques – Escritos
Sartre, Jean-Paul – O Ser e o Nada
Becker, Ernest – A Negação da Morte
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