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O Otimismo Como Farsa: Meritocracia, Ativismo Performático e a Fragilidade do Eu Digital

O Otimismo Como Farsa: Meritocracia, Ativismo Performático e a Fragilidade do Eu Digital



Por um cético deitado

Se tem uma coisa que me fascina na modernidade é a capacidade humana de se autoiludir com entusiasmo. O sujeito contemporâneo se tornou um operário da própria esperança, trabalhando incessantemente para sustentar uma crença vazia de que tudo vai dar certo, desde que ele mentalize com força suficiente. É a lógica do pensamento positivo, da gratidão como moeda de troca cósmica e do ativismo feito a partir do conforto de um café de R$ 30.

Não que eu tenha algo contra o otimismo – desde que ele seja um mecanismo de sobrevivência e não uma camisa de força. Mas me espanta a facilidade com que as pessoas aceitam a ideia de que basta tentar, lutar, se esforçar e, claro, agradecer ao universo, que tudo será resolvido. Como se o universo fosse uma espécie de assistente virtual espiritual, sempre disponível para atender pedidos, desde que feitos com a hashtag certa.

O que me traz aos três grandes pilares dessa ilusão coletiva: a meritocracia como farsa motivacional, o ativismo performático como estratégia de aceitação social e a dependência da tecnologia como fuga da própria existência. Vamos por partes, porque aqui o otimismo precisa ser desconstruído com calma.

1. Meritocracia: A Ilusão do Esforço Individual

Acreditar em meritocracia em pleno século XXI é o equivalente a confiar em pirâmide financeira. O truque é o mesmo: prometer uma ascensão que só funciona para quem já está no topo. A ideia de que todos temos as mesmas 24 horas no dia e que o sucesso é apenas uma questão de esforço ignora uma série de fatores estruturais que fazem a diferença entre quem prospera e quem passa a vida tentando pagar os boletos sem sucesso.

A falácia do self-made man é amplamente disseminada por empresários que nasceram ricos e vendem a ilusão de que qualquer um pode alcançar o topo, desde que trabalhe o suficiente. Jeff Bezos, Elon Musk e Mark Zuckerberg são apresentados como exemplos de genialidade e dedicação, mas raramente alguém menciona que eles nasceram em famílias abastadas, com acesso a redes de apoio e oportunidades que a maioria das pessoas jamais terá.

Mark Fisher, em Realismo Capitalista, explica como essa narrativa opera dentro de um sistema que terceiriza a culpa do fracasso para o indivíduo. Se você não conseguiu subir na vida, o problema não é a desigualdade estrutural, a concentração de renda ou as condições precárias de trabalho. O problema é você. Você que não se esforçou o bastante, que não soube empreender, que não soube aproveitar suas "24 horas".

A meritocracia não é apenas uma mentira, mas uma ferramenta de alienação que mantém a massa ocupada correndo atrás de um sucesso que nunca virá. A recompensa? Mais trabalho. Porque, dentro dessa lógica, não há fim. Não importa o quanto você conquiste, sempre haverá um novo nível de esforço exigido para que a engrenagem continue girando. Como Byung-Chul Han coloca em A Sociedade do Cansaço, o sujeito contemporâneo se tornou seu próprio patrão e carrasco, explorando a si mesmo até o limite da exaustão.

Mas se há algo pior do que acreditar em meritocracia, é acreditar que se pode mudar o mundo com um tweet.

2. O Ativismo Performático: Militando Entre a Massagem e a Yoga



Se antes a militância exigia ação concreta, hoje ela se resume a engajamento digital e indignação selecionada. O ativismo performático não quer mudar o mundo, ele quer parecer que está mudando.

O fenômeno é bem simples: as pessoas adotam discursos progressistas não por convicção, mas porque isso gera status social. Falar sobre desigualdade, meio ambiente ou direitos humanos virou um acessório, algo que complementa a identidade digital de um indivíduo. O problema é que essa militância se dissolve na primeira contradição. O sujeito que prega contra o consumo desenfreado está postando suas críticas direto de um iPhone 15. O militante ambiental que condena a exploração dos recursos naturais viaja de avião para Bali a cada seis meses.

É a era do woke capitalism, onde grandes corporações se apropriam de pautas sociais para vender produtos. Empresas exploradoras lançam campanhas contra o racismo enquanto pagam salários miseráveis a seus funcionários. Marcas de fast fashion fazem propaganda feminista enquanto utilizam trabalho análogo à escravidão em países subdesenvolvidos. O discurso progressista foi sequestrado pelo mercado e transformado em mercadoria.

Essa superficialidade do ativismo digital faz com que a militância se torne mais um produto de marketing pessoal. O engajamento se resume a um filtro no Instagram, a uma hashtag bem escolhida, a um posicionamento raso sobre um problema complexo. Como Naomi Klein aponta em Sem Logo, o capitalismo tem uma capacidade absurda de absorver suas próprias críticas e transformá-las em ferramenta de lucro. E, no fim das contas, a indignação digital não ameaça o sistema, apenas o fortalece.

E se há algo que fortalece ainda mais essa ilusão, é a dependência da tecnologia.

3. A Fragilidade do Eu Digital e a Ansiedade da Hiperconectividade

A era digital criou um novo tipo de angústia: a de não existir sem validação online. O sujeito contemporâneo não é apenas um ser humano, ele é uma marca pessoal. Tudo precisa ser postado, analisado, curtido e compartilhado.

A hiperconectividade tornou a identidade digital mais importante do que a identidade real. Hoje, a autenticidade não importa – o que importa é a percepção que os outros têm de você. O medo de ficar offline não é um medo da solidão, mas da irrelevância.

Byung-Chul Han aponta em No Enxame que o excesso de conectividade levou a um esgotamento coletivo, onde a exposição constante impede qualquer espaço para reflexão. Não há mais tempo para o ócio, para a contemplação, para o silêncio. A ansiedade digital não vem apenas da pressão por engajamento, mas da necessidade de preencher todos os espaços com conteúdo.

Essa dependência da tecnologia cria uma relação paradoxal: ao mesmo tempo que as redes sociais proporcionam um espaço para expressão, elas também eliminam qualquer possibilidade de desconexão genuína. O sujeito está preso em um ciclo onde a única forma de existir é sendo visto.

E o que acontece quando a internet cai? O colapso.

O sujeito que se acostumou a filtrar cada interação, a editar cada pensamento antes de publicá-lo, se vê perdido diante da realidade não editável. A mesa do café sem tomada, a ausência de Wi-Fi, a necessidade de encarar o outro sem a mediação de um meme. É nesse momento que a farsa do otimismo, da militância performática e da hiperconectividade se revela: tudo desaba quando não há um espaço digital para sustentar a ilusão.



Conclusão: O Ceticismo Como Última Resistência

A grande ironia disso tudo é que o sujeito contemporâneo acredita estar mais livre do que nunca. Mas sua liberdade é apenas uma outra forma de controle, disfarçada de escolha. Ele trabalha por conta própria, mas está preso à lógica da autoexploração. Ele se engaja em causas sociais, mas seu ativismo é uma simulação inofensiva. Ele se conecta com o mundo inteiro, mas perdeu qualquer relação autêntica consigo mesmo.

E aqui estou eu, realista, irônico e, se possível, deitado. Porque já aprendi que, quanto menos eu me mexer, menor a chance de algo dar errado.

#maispertodaignorancia #norolecomaignorancia

Referências

FISHER, Mark. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Autonomia Literária, 2020.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2017.

HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Vozes, 2018.

KLEIN, Naomi. Sem Logo. Record, 2002.



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