O Fim do Ciclo Escola-Universidade-Trabalho: Ruptura ou Novo Dispositivo de Controle?
O artigo de Michael França publicado na Folha de S.Paulo sugere que o modelo tradicional de educação e carreira, baseado na sequência escola-universidade-trabalho, está obsoleto diante das transformações tecnológicas e sociais. De fato, há uma mudança evidente nos padrões de aprendizado e empregabilidade, mas essa transição não é isenta de contradições e armadilhas discursivas. A proposta de um aprendizado contínuo, apresentada como uma necessidade inevitável, pode ser lida também como um novo dispositivo de controle e autoexploração.
Michael França argumenta que o modelo linear de formação e trabalho não acompanha mais o ritmo da sociedade contemporânea, sendo substituído pela necessidade de atualização constante. No entanto, esse argumento ignora um aspecto crucial: a mercantilização do aprendizado. Se antes a trajetória educacional visava preparar o indivíduo para o mercado, agora o próprio conhecimento se torna um produto dentro de um ciclo interminável de certificações, cursos e treinamentos. O sujeito nunca está pronto, nunca é suficiente – e essa insuficiência gera demanda, lucros e ansiedade.
Essa lógica não surge de um vazio. Como já discutido por Byung-Chul Han, a sociedade contemporânea deslocou o controle externo para um regime de autoexploração. O que antes era uma imposição das instituições agora se tornou um projeto pessoal. O trabalhador deve se reinventar constantemente, não por uma escolha genuína, mas porque a estrutura social exige essa flexibilidade ininterrupta. O aprendizado contínuo, vendido como libertação, pode se tornar uma prisão sem grades, onde o sujeito se inscreve voluntariamente em um ciclo de insatisfação crônica.
Além disso, a destruição do modelo tradicional não significa necessariamente mais liberdade. O fim do ciclo escola-universidade-trabalho coincide com a precarização do trabalho e a dissolução das fronteiras entre vida pessoal e profissional. Se antes havia uma linha divisória clara entre tempo de estudo, tempo de trabalho e tempo de descanso, hoje tudo se funde em um único fluxo contínuo, onde o trabalhador precisa estar sempre disponível, sempre aprendendo, sempre em performance. O trabalho não termina mais quando o expediente acaba, e o estudo não se restringe mais ao ambiente acadêmico – ambos invadem a subjetividade e colonizam o tempo livre.
Michael França também sugere que as empresas precisam se adaptar e incentivar a capacitação contínua. Mas a questão central é: essa adaptação beneficiará de fato os trabalhadores ou apenas servirá para maximizar a produtividade sem garantir melhores condições de vida? Se a lógica do desempenho continua sendo o princípio organizador da sociedade, o incentivo ao aprendizado será sempre um meio para alcançar metas empresariais, e não um caminho para a realização pessoal. No limite, a ideia de aprendizado contínuo pode ser apenas mais uma demanda a ser atendida, mais uma obrigação disfarçada de oportunidade.
É claro que a educação não pode ser estática, e a adaptação às mudanças é fundamental. Mas a questão é: estamos realmente nos tornando mais livres e conscientes dentro desse novo modelo ou apenas ajustando nossas subjetividades às exigências do mercado? O risco é que, ao aceitar sem questionamento essa narrativa, acabemos transformando o aprendizado em mais uma engrenagem da lógica de produtividade, em vez de resgatá-lo como um espaço de reflexão crítica e experimentação real.
Se o ciclo tradicional acabou, o que se coloca em seu lugar não é necessariamente uma libertação, mas uma nova configuração da servidão contemporânea. O que Michael França descreve como uma transição inevitável talvez seja, na verdade, apenas uma nova forma de controle – e se não tivermos cuidado, passaremos a vida inteira correndo atrás de uma formação infinita sem jamais alcançar a autonomia prometida.
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Referências
Michael França. Ciclo escola, universidade e trabalho acabou. Folha de S.Paulo. Publicado em 10 de março de 2025. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/michael-franca/2025/03/ciclo-escola-universidade-e-trabalho-acabou.shtml
Byung-Chul Han. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, 2017.
Byung-Chul Han. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Editora Estação Liberdade, 2018.
Herbert Marcuse. Eros e Civilização. Editora Zahar, 1999.
Ernst Becker. A Negação da Morte. Editora Paz & Terra, 2007.
Zygmunt Bauman. Vida Líquida. Editora Zahar, 2005.
Élisabeth Roudinesco. O Eu Soberano: Ensaio sobre as derivas identitárias. Editora Zahar, 2021.
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