O Celular como Objeto Transicional de Silício: O Eterno Retorno da Satisfação e a Impossibilidade da Elaboração na Contemporaneidade
Introdução
Vivemos um paradoxo contemporâneo: o celular, ferramenta de conexão e acesso à informação, tornou-se também um dos principais responsáveis pelo adoecimento psíquico de jovens e adolescentes. No ambiente escolar, o problema se agrava — estudos apontam que o uso excessivo dos celulares prejudica o desempenho acadêmico e agrava questões de saúde mental. Contudo, proibir seu uso não parece surtir efeito significativo. Por quê?
Neste artigo, proponho uma reflexão que ultrapassa a simples questão disciplinar ou moral sobre o uso dos celulares nas escolas e na vida cotidiana. Apoio-me em autores como Donald Winnicott, Fédida, Nietzsche e Byung-Chul Han para entender como o celular ocupa hoje a função de um "objeto transicional de silício", que não projeta o outro, não possibilita o luto, tampouco a elaboração da falta — tornando-se um elemento central na perpetuação do "eterno retorno da satisfação vazia".
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O Objeto Transicional e a Função do Celular na Contemporaneidade
Para Donald Winnicott, o objeto transicional é um artefato essencial no desenvolvimento psíquico da criança. É o famoso "cobertorzinho" ou "paninho" impregnado pelo cheiro da mãe, carregando a marca da presença e da ausência. Esse objeto tem função simbólica: ajuda a criança a suportar o luto pela perda da presença materna e a elaborar sua entrada no mundo.
Porém, o objeto transicional contemporâneo — o celular — não carrega cheiro, marcas, nem resquícios do outro. Feito de silício, frio e liso, ele não se suja e não se altera. Ao contrário: se molda ao desejo do sujeito, retroalimentando seus impulsos, evitando qualquer frustração ou confronto com a alteridade. É um cobertor que não tem cheiro de ninguém — apenas o reflexo do próprio sujeito.
Dessa forma, o celular não permite a transição, não conduz o sujeito à autonomia nem à elaboração da ausência. Ao invés disso, aprisiona o sujeito em um ciclo de satisfação imediata, onde tudo que é diferente ou desafiador pode ser descartado com um simples toque. Isso cria um efeito perverso: o adolescente nunca experimenta a frustração necessária à formação de um psiquismo estruturado.
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O Mal-Estar da Civilização e a Captura Subjetiva pela Tecnologia
Como já dizia Freud (2011) em O Mal-Estar na Civilização, a cultura impõe restrições ao sujeito para possibilitar a vida em sociedade, o que gera inevitáveis tensões. Contudo, a contemporaneidade remove a tensão e a substitui pelo excesso de possibilidades de gozo. O sujeito já não se depara mais com o limite — e isso tem efeitos devastadores.
Byung-Chul Han (2018) aponta que vivemos na sociedade da transparência e do desempenho, onde o sujeito é compelido a se expor, a performar e a se manter constantemente produtivo e validado. Nesse cenário, o celular é a ferramenta perfeita para sustentar essa lógica, funcionando como uma extensão do eu, que nunca permite a experiência do fracasso, da espera ou da ausência.
Dentro das escolas, isso é ainda mais evidente. O espaço que deveria ser da construção simbólica, do enfrentamento das dificuldades e da elaboração do conhecimento torna-se um palco de dispersão, ansiedade e performance. Proibir o celular não resolve, porque o sujeito já está subjetivamente estruturado para não suportar a ausência e a frustração.
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O Eterno Retorno da Satisfação Imediata: Uma Leitura a partir de Nietzsche
Nietzsche (2011) propôs o eterno retorno como um exercício ético e trágico: suportar viver a vida tal como ela é, infinitamente, com todas as suas dores, perdas e belezas. Era, na verdade, um convite à afirmação da vida em sua totalidade, inclusive do trágico.
No entanto, o eterno retorno da contemporaneidade é o eterno retorno do mesmo — da mesmice, da repetição vazia e do gozo raso. O celular possibilita uma circularidade estéril, onde o sujeito apenas consome o que deseja, evitando qualquer contato com o que possa ser diferente ou desafiador.
Esse ciclo de satisfação imediata esvazia o sujeito, impedindo-o de encontrar o trágico, o limite e o real — que são justamente o que possibilita a criação, o desejo e o próprio sentido da vida.
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Conclusão: A Impossibilidade da Elaboração e o Risco de um Sujeito Estéril
Diante desse cenário, é preciso reconhecer que o celular não é o problema em si, mas o sintoma de uma estrutura subjetiva incapaz de suportar o vazio, a falta e o tempo da elaboração.
Proibir o uso do celular nas escolas, portanto, é inócuo se não enfrentarmos a questão de fundo: o sujeito contemporâneo foi capturado pela lógica da satisfação imediata e perdeu a capacidade de elaboração psíquica. Sem espaço para o trágico, para o luto e para a espera, restam apenas sujeitos cada vez mais ansiosos, dependentes e incapazes de sustentar vínculos reais.
A escola, nesse contexto, precisa urgentemente se repensar: ainda é possível formar sujeitos capazes de suportar a frustração, o tédio e o tempo da elaboração? Ou estaremos condenados ao eterno retorno da satisfação vazia, cada vez mais alienados de nós mesmos e do mundo?
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Referências
FÉDIDA, Pierre. O Ofício de Paciente: Entre o Falado e o Não-Falado. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Tradução de Helena Maria Pereira de Souza. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
WINNICOTT, Donald W. O Brincar e a Realidade. Tradução de José Outeiral e Ishaq E. Ishaq. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
https://www.terra.com.br/noticias/educacao/o-grande-paradoxo-do-celular-na-adolescencia-sao-ruins-para-o-desempenho-e-a-saude-mental-mas-proibi-los-na-escola-nao-funciona,f8f893cac61d5d730d29fb376a22e6a6t6pvwevy.html
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