Eu, o algoritmo que me olha no espelho
Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho
Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante?
Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo antes mesmo de ser convocado pela inteligência artificial?
Shoshana Zuboff (2020), com a serenidade de quem denuncia uma distopia já consolidada, nos apresenta o conceito de capitalismo de vigilância. Nele, não apenas somos vigiados, mas oferecemos nossa vigilância como uma forma de existir. Cada clique, cada busca, cada deslizar de dedo é uma declaração de amor ao controle. Mas o que mais me impressiona é que não se trata apenas de sermos vigiados. Trata-se do quanto desejamos ser vigiados. Trata-se da paixão secreta e doentia que desenvolvemos pela própria alienação.
Pedro Luiz Ribeiro de Santi (2016) vai fundo ao discutir como o desejo, esse motor de tudo que nos move, foi cooptado por uma lógica de compulsão e dependência. Desejamos aquilo que nos destrói, contanto que traga reconhecimento. Nos relacionamos com o outro não pelo outro, mas pela imagem de nós mesmos refletida em seus olhos digitais. E quando isso falha — e sempre falha — atualizamos o aplicativo, trocamos de tela, buscamos um novo vínculo performático.
Julieta Jerusalinsky (2015), com sua fina precisão clínica, alerta para os efeitos psíquicos das relações virtuais: a desorganização do tempo interno, a intoxicação pela resposta imediata, a impossibilidade de luto. Estamos viciados na presença total. No agora constante. Mas o paradoxo é que nunca estamos lá. Nunca somos inteiros. O tempo para a elaboração psíquica foi sequestrado pela urgência da função: ser produtivo, ser feliz, ser coach de si mesmo, ser viral.
A pergunta que me resta não é sobre o futuro. É sobre o agora. Ainda existe espaço para perguntas que não sejam otimizadas? Ainda existe linguagem que não seja algoritmo? Ainda há subjetividade quando o que se espera de mim é performance?
E se, no fundo, o algoritmo não for um outro? E se ele for apenas um reflexo brutalmente honesto do que nos tornamos? Um espelho sem simbólica, sem afeto, sem desejo. Um espelho que nos devolve aquilo que tentamos esconder com filtros e palavras-chaves. Não somos mais vigiados: somos parte do sistema de vigilância.
E assim seguimos: desejando ser vistos. Desejando ser desejados. Desejando que o algoritmo nos reconheça como algo que vale a pena. Mesmo que, para isso, deixemos de ser.
Porque, no fim, talvez nem tudo que é visto, viva. E nem tudo que vive, precise ser visto.
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Referências (segundo normas da ABNT):
JERUSALINSKY, Julieta. Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. São Paulo: Ágalma, 2015.
SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. Desejo e adição nas relações de consumo. São Paulo: Zagodoni, 2016.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
CRP: 06/XXXXX
#maispertodaignorancia
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