INTRODUÇÃO
Eu me pergunto se, em algum momento, ainda somos capazes de criar vínculos reais. Ou se tudo já virou mercado — até o afeto. Esses dias me deparei com o termo floodlighting, uma “tendência” entre os mais jovens, que consiste em despejar o próprio sofrimento e trauma logo de cara, acreditando que isso criará intimidade. Ri de canto. Mais uma forma de transformar a dor em mercadoria emocional. E, no fundo, uma cena melancólica do nosso tempo.
Ao cruzar esse fenômeno com as reflexões de Cioran e Bauman, percebo que não há novidade alguma nisso. Apenas uma atualização do velho desespero humano: gritar por socorro, mas em meio a um mundo que mal sabe lidar com o próprio peso.
DESENVOLVIMENTO
Cioran (2011, p. 83) já alertava: “O desespero é a única prova de que existimos”. E talvez o floodlighting seja a versão digitalizada desse desespero — onde expor o trauma vira uma maneira desesperada de pedir: “me reconheça, me dê sentido”. Mas qual a chance disso funcionar numa sociedade onde o outro já não é mais o outro, e sim um reflexo do que eu quero consumir?
Vejo, na prática, que a dor virou performance. "Falamos de nós mesmos para que o outro nos salve" (CIORAN, 2012, p. 47), dizia ele. Mas quem salva quem hoje? Quando até o amor virou líquido, como apontou Bauman, quem está disposto a carregar o peso da dor alheia?
Bauman (2004, p. 12) não deixa dúvidas ao afirmar que “os relacionamentos são mantidos apenas enquanto fornecem satisfação mútua”. E o floodlighting, ao invés de criar laço, cria exatamente o oposto: afasta. Quem quer adotar o sofrimento de um estranho se o mercado das relações oferece sempre alguém mais leve, mais fácil, mais divertido na próxima rolagem?
Seoham (2023) — e aqui me permito referenciar uma reflexão que ecoa essa conversa — lembra que a dúvida, hoje, não nasce da busca pelo saber, mas da tentativa de encobrir o desespero. E que desespero maior há do que se expor a um outro que já nasce descartável? “A dúvida é a sombra perfeita para camuflar o pavor de não haver sentido algum” (SEOHAM, 2023, p. 59).
Essa prática do floodlighting escancara o paradoxo: queremos laço, mas só sabemos viver o consumo. Queremos permanência, mas só sabemos clicar em “próximo”. Nessa dança mórbida, a dor se torna uma moeda — e o amor, um produto com política de devolução.
Cioran já sabia: “Vivemos na impossibilidade de amar e na necessidade de fazê-lo” (CIORAN, 2011, p. 101). E Bauman ratifica: “O amor, quando vira mercadoria, deixa de ser refúgio e se torna risco” (BAUMAN, 2004, p. 48). O que resta, então? Resta o vazio. Resta a performance. Resta a dúvida como cortina de fumaça para não admitirmos que estamos, todos, profundamente sozinhos.
CONCLUSÃO
Ao final, só me resta ironizar: construímos um mundo tão líquido que até o sofrimento precisa ser leve, palatável, vendável. E me pergunto — será que ainda há espaço para o amor real? Ou estamos condenados a desfilar nossas feridas em vitrines digitais, esperando que alguém compre — e, de preferência, com frete grátis?
Talvez sejamos, como disse Cioran, cadáveres adiados, tentando ainda assim convencer o outro de que vale a pena carregar nosso peso. Mas o outro, esse outro líquido, escapa. Porque ninguém quer se afogar na dor alheia quando o mundo oferece prazer instantâneo na próxima notificação.
E a ironia final? Ao tentar provar que existimos despejando nossa dor, só reafirmamos nossa irrelevância. No mercado das almas leves, peso é falha técnica.
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REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
CIORAN, Emil. Nos Cumes do Desespero. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012.
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