Resumo
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a transformação simbólica do trabalho no contexto contemporâneo. A partir de autores como Freud, Byung-Chul Han e Michel Fédida, discute-se como o prazer em trabalhar foi capturado pela lógica do desempenho, resultando em autoexploração e sintomas depressivos. O texto problematiza a romantização do trabalho e o esvaziamento subjetivo provocado por uma sociedade que exige produtividade como condição de existência.
1. Introdução
Tenho observado que o trabalho, em vez de ser apenas um meio de sustento, passou a representar para muitos o lugar onde se busca sentido, reconhecimento e pertencimento. Mas me pergunto: em que momento esse prazer em trabalhar deixou de ser potência e passou a ser sobrecarga?
A romantização do trabalho nos últimos anos criou uma ideia perigosa: a de que devemos amar o que fazemos, estar constantemente motivados e emocionalmente disponíveis para o desempenho. Essa exigência não apenas mascara formas sutis de exploração, mas também aprofunda o sofrimento psíquico ao responsabilizar o sujeito por seu esgotamento.
2. O trabalho como identidade e performance
Vivemos em uma época em que o trabalho se tornou o centro da identidade. Não é mais suficiente exercer uma função: é preciso fazer dela um projeto de vida. Como descreve Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço (2015), deixamos de ser sujeitos oprimidos por um sistema autoritário e nos tornamos agentes da nossa própria exploração. O sujeito contemporâneo acredita estar se realizando, mas está, na verdade, reproduzindo uma lógica de desempenho que não permite falhas, pausas ou limites.
Essa transformação cria um modelo de trabalhador que se autoidealiza como proativo, resiliente e produtivo. Qualquer sinal de exaustão é interpretado como fracasso pessoal. A crítica ao sistema é deslocada para a culpa individual. O trabalho, então, deixa de ser um meio e se transforma em fim.
3. A captura do desejo e o fim do ócio
Freud, ao discutir a função do desejo e da sublimação, nos lembra que é por meio da tensão com o outro e da impossibilidade de satisfação imediata que o sujeito cria. No entanto, essa tensão, hoje, foi dissolvida pela exigência de prazer constante e produtividade ininterrupta. O desejo é transformado em demanda, e a pausa se torna sinônimo de fracasso.
O ócio, outrora valorizado como espaço de elaboração simbólica, é agora demonizado. Vivemos o paradoxo de uma sociedade que estimula a criatividade, mas que elimina o tempo necessário para que ela emerja. A produtividade substituiu o pensamento.
4. Depressividade e silêncio negado
Michel Fédida nos alerta que o sofrimento, quando privado de tempo e espaço para ser elaborado, não desaparece — ele retorna sob a forma da depressividade. O burnout, amplamente discutido nos dias atuais, pode ser lido como uma manifestação silenciosa dessa impossibilidade de luto. O sujeito não pode parar, não pode falhar, não pode simplesmente ser.
A depressividade funcionalizada transforma o sofrimento em conteúdo — frases motivacionais, vídeos inspiradores, discursos de superação. Tudo isso reforça o ciclo, impedindo que o sujeito reconheça seu próprio esgotamento como sintoma de uma lógica maior que o oprime.
5. Conclusão
Diante disso, é urgente repensar o papel do trabalho em nossas vidas. Trabalha-se para consumir, mas consome-se também para continuar trabalhando. A sobrecarga deixou de ser opressão e virou mérito. No fundo, o trabalho passou a ser o último refúgio de um sujeito sem tempo, sem sonho e sem pausa — mas ainda cercado de metas, likes e discursos de motivação.
Ressignificar o trabalho exige resgatar o direito à pausa, ao ócio, ao silêncio. Talvez só assim possamos reencontrar um espaço onde o trabalho não signifique desaparecer de si, mas criar possibilidades de existência mais amplas.
Referências
Han, B.-C. (2015). A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.
Freud, S. (1914). Introdução ao Narcisismo. In: Obras Completas, Vol. 14. Imago.
Fédida, M. (2001). O Luto e a Obra da Melancolia. São Paulo: Escuta.
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