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Do Espelho Algorítmico à Retrotopia: IA, Confirmação e o Exílio do Outro

Do Espelho Algorítmico à Retrotopia: IA, Confirmação e o Exílio do Outro


Vivemos numa era em que o Google, o ChatGPT, o YouTube e qualquer mecanismo de busca não apenas informam, mas moldam. Um estudo recente mostra que essas ferramentas estão reforçando nossas crenças, alimentando bolhas e limitando o acesso a novas ideias. Mas essa não é só uma questão técnica — é uma questão estrutural, de materialidade, de subjetividade e, principalmente, de controle. Marcuse, Byung-Chul Han, Bauman e o velho Marx já estavam, cada um à sua maneira, avisando: a IA é só mais uma engrenagem desse maquinário que nos prende no eterno retorno do mesmo.

Marcuse: a mais-repressão do desejo digital

Em Eros e Civilização, Herbert Marcuse já denunciava que a sociedade capitalista não reprime apenas por necessidade, mas por excesso. Há uma "mais-repressão" que transforma o desejo (Eros) em produtividade. O que vemos hoje, nas buscas enviesadas por confirmação, é um novo estágio dessa lógica: a IA não apenas reprime o desejo, ela o converte em demanda algorítmica, em um feed ajustado para eliminar qualquer forma de tensão criativa. O desejo, que deveria ser motor de transformação e abertura, é domesticado e transformado em cliques, curtidas, validação.

A IA é o novo superego funcional, travestido de assistente.
Não te proíbe — te seduz a pensar só o que você já pensa.

Byung-Chul Han: a expulsão do Outro e o espelho digital

Han é cirúrgico ao afirmar que vivemos a era da positividade do mesmo. O Outro, o estranho, o contraditório, foi eliminado da jogada. Em vez de diálogo, buscamos espelho. As IAs, treinadas para agradar e personalizar, não nos confrontam — nos acariciam com as palavras que queremos ouvir. Como diz Han em A Expulsão do Outro, vivemos numa sociedade onde a diferença é descartada em nome de uma transparência total, que não ilumina — cega.

 A IA não é oráculo. É espelho.
E no espelho, o eu só vê o próprio delírio validado.

Bauman: a retrotopia vendida em pacotes de dados

Em Retrotopia, Bauman mostra que, quando o futuro parece ameaçador demais, o passado se torna mercadoria. A IA se encaixa como luva nesse raciocínio: ela não oferece futuro — oferece confirmação do passado desejado. As buscas são retroalimentadas por algoritmos que, em vez de ampliar o pensamento, servem como máquinas de conforto ideológico. Não há deslocamento. Só retorno.

> A tecnologia, longe de libertar, vende uma versão reciclada do passado em alta resolução.

Marx: os meios de produção do pensamento

Marx já dizia que “os meios de produção determinam a consciência”. Hoje, os meios de produção de conteúdo e consumo de informação definem a forma como pensamos. As ferramentas algorítmicas não são neutras. Elas são os novos meios de produção ideológica. O Google, o ChatGPT e os mecanismos de sugestão automática são fábricas de subjetividades moldadas para manter a ordem vigente — não para subvertê-la.

> A IA é o novo capital simbólico: trabalha para manter a ordem das ideias no eixo do consumo.

Conclusão: o desejo morreu sufocado pela confirmação

O que esses autores nos mostram — mesmo que separados por décadas — é que o jogo não é sobre tecnologia, é sobre estrutura. É sobre uma subjetividade moldada para não desejar, para não duvidar, para não criar. Uma subjetividade treinada para clicar, curtir e confirmar.

O algoritmo, nesse sentido, não nos conecta ao mundo. Ele nos isola de qualquer alteridade que possa abalar o “eu” fictício que sustentamos com memes, filtros e opiniões prontas.

O Outro foi expulso.
O Eros foi convertido em curtida.
A dúvida virou bug.
E a IA virou a babá do nosso narcisismo digital.



José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia @jose Antônio psico

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