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Caindo no Abismo com Estilo: Pós-modernidade, Angústia e a Anestesia do Discurso



Caindo no Abismo com Estilo: Pós-modernidade, Angústia e a Anestesia do Discurso

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o impacto — ou sua ausência — das análises filosófico-sociológicas sobre a pós-modernidade, a partir de autores como Zygmunt Bauman e Luiz Felipe Pondé, dentro do ambiente discursivo mediático. Dialogando com conceitos como modernidade líquida, racionalidade instrumental, liberdade angustiada e mercantilização do eu, buscamos entender como o discurso contemporâneo transforma a angústia em mercadoria e a crítica em estética. Ao final, propomos uma resistência possível: a ironia lúcida, a dança no abismo.

1. Introdução

Vivemos em um tempo onde a promessa moderna de progresso, razão e segurança ruiu. O projeto iluminista, outrora sustentado pela fé no Estado, na ciência e na moralidade racional, foi aos poucos substituído por uma lógica fluida, onde tudo é efêmero, inclusive o próprio sujeito. A pós-modernidade não chegou como uma ruptura, mas como uma mutação interna do próprio modelo moderno. Como diz Bauman (2001), "o que era sólido desmanchou-se no ar", e nós, sujeitos desse tempo, escorremos juntos com ele.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, ao comentar essa transição, ironiza: "vivemos como se corrêssemos sobre uma fina casca de gelo: se pararmos, afundamos". Essa corrida não leva a lugar algum. Ela é apenas a manutenção da funcionalidade, da performance, da sobrevivência simbólica dentro de um ambiente saturado de discursos, imagens e expectativas. Mas o que acontece quando esse diagnóstico filosófico-social entra no campo da discursividade mediática? Como ele é recebido, ou melhor, absorvido?

2. Modernidade, Pós-modernidade e o Diagnóstico do Deserto

A modernidade foi marcada por um investimento simbólico na razão, na ciência e no progresso. O sujeito moderno, herdeiro do Iluminismo, acreditava que poderia se tornar autônomo, que existia um telos, uma direção clara para a história e que bastava avançar — com técnica e esclarecimento — para vencer a ignorância, a dor e a morte.

No entanto, o século XX escancarou o fracasso dessa utopia. Como bem apontam Bauman (1989) e Arendt (2007), o Holocausto não foi produzido por monstros, mas por pessoas comuns, burocraticamente inseridas em um sistema racional. O que era para ser a culminância da razão, revelou-se o seu pesadelo.

A pós-modernidade surge, então, como um “despertar maldito”, nas palavras de Bauman. Um despertar em um mundo onde não há mais promessas, nem centros, nem narrativas fundantes. O sujeito é livre, mas essa liberdade se converte em peso. Como Nietzsche já alertava, *“Deus está morto”, e junto com Ele, todas as garantias simbólicas que sustentavam a existência.

3. A Angústia Pós-moderna e o Eu em Fragmentos

A consciência pós-moderna, como diz Pondé, é antes de tudo a consciência do fracasso. O fracasso da estabilidade, da continuidade, da identidade coesa. O sujeito pós-moderno não é apenas livre, ele é obrigado a ser livre. E isso o mergulha em uma angústia permanente. Sua identidade é performada, sua existência é transitória, seus vínculos são frágeis. Tudo pode — e provavelmente vai — se dissolver.

O amor, como já discutido por Bauman (2004), também se liquefez. O outro é um potencial fornecedor de satisfação, mas também um risco, um peso, uma ameaça à leveza que o sujeito contemporâneo tanto almeja. A relação amorosa torna-se um contrato com cláusulas de desempenho emocional. E como diz Pondé: “ninguém consegue amar por mais de duas horas na pós-modernidade”.

Essa angústia, porém, que poderia ser elaborada como motor de subjetivação, torna-se um dado, uma métrica, um conteúdo. Ao invés de provocar silêncio e escuta, vira discurso. Um discurso que busca like, aprovação, monetização. A angústia virou pauta, não elaboração. O desespero virou trilha sonora para vídeos curtos e virais.

4. O Discurso Mediático como Anestesia da Angústia

O que mais impressiona não é o diagnóstico de que estamos mergulhados em um tempo líquido, mas a constatação de que tal diagnóstico, mesmo quando exposto com clareza e precisão, é neutralizado pela própria lógica discursiva que denuncia. O pensamento é absorvido como estética, a crítica vira produto, e a dor se transforma em narrativa emocionalmente vendável.

No ambiente mediático, o sujeito discursivo não precisa mais pensar — ele precisa apenas parecer profundo. A reflexão virou performance. E mesmo autores como Bauman ou Nietzsche são editados em frases de efeito e jogados nas prateleiras das redes sociais, ao lado de gurus do otimismo e coaches do eu performático.

Como já refletimos anteriormente, a discursividade contemporânea não comporta tempo de elaboração. O sujeito é atravessado por imagens, slogans, filtros e exigências de performance. A angústia é imediatamente recodificada como disfunção, a ser tratada, resolvida ou ignorada. Nada pode durar, nem mesmo a dor.

5. Conclusão: Dançar no Abismo

Talvez reste apenas dançar no abismo. Mas não com a euforia do Carpe Diem esvaziado. Não se trata de um hedonismo inconsequente, mas de uma ironia lúcida. Um modo de sustentar a angústia sem a ilusão de cura. Como Nietzsche sugeria, não se trata de apagar o sofrimento, mas de transformá-lo em potência.

Bauman propõe uma ética para o inverno. Um modo de existir em um mundo onde as flores são de plástico. Onde a travessia é desértica, mas ainda assim exige de nós alguma forma de coragem — nem que seja para continuar pensando.

Se a modernidade acreditava na razão, e a pós-modernidade se perdeu na liberdade, talvez o que nos reste seja nomear o vazio com honestidade. Não para preenchê-lo, mas para que, ao menos, ele não nos engula sem saber.


Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

PONDÉ, Luiz Felipe. Contra um mundo melhor: ensaios do afeto. São Paulo: Leya, 2010.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

https://youtu.be/Xb3_AOOSVOM?si=2tjfZ9XJPYhDSyQa

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Texto escrito por José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo (CRP 06/172551) – joseantoniolcnd@gmail.com – com apoio da IA Silvan (ChatGPT) como ferramenta auxiliar de construção crítica e textual.
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