A Previsibilidade do Discurso e a Clínica Terapêutica: Um Perigo para a Singularidade?
Introdução
A recente pesquisa sobre um modelo computacional capaz de prever conversas humanas, publicada na Nature Human Behaviour e divulgada pela CNN Brasil, levanta uma série de reflexões sobre os impactos dessa tecnologia no campo da psicologia e, mais especificamente, no setting terapêutico. Ao analisar o funcionamento do cérebro na construção de diálogos, essa ferramenta parece avançar na compreensão das estruturas discursivas e de sua previsibilidade. No entanto, quando aplicada à clínica, o que pode parecer um avanço pode, na realidade, comprometer a singularidade do discurso e da experiência subjetiva. Afinal, se a fala se torna previsível, onde fica a possibilidade de elaboração genuína?
A Previsibilidade e a Armadilha da Repetição
Dentro da psicanálise, Freud já apontava que, entre recordar, repetir e elaborar, muitos sujeitos ficam presos à repetição sem alcançar a elaboração. Se um modelo computacional consegue prever um discurso, ele não estaria reforçando essa tendência à repetição? A função da terapia não é apenas relembrar ou repetir padrões discursivos, mas principalmente elaborar o que antes não podia ser simbolizado. A previsibilidade do discurso mediado pela IA pode justamente estagnar esse processo, restringindo o espaço de novas formulações e, consequentemente, de novas possibilidades de subjetivação.
Se o pensamento, como pontua a psicologia cognitiva, está atrelado ao discurso e à ação, então o que resta ao sujeito que tem seu discurso aprisionado em padrões reconhecidos e reproduzidos por um algoritmo? O risco é que a tecnologia passe a alimentar um círculo vicioso no qual o paciente, em vez de explorar novas significações, apenas reafirma discursos previsíveis, minando sua possibilidade de mudança.
A Desumanização do Setting Terapêutico
Wilfred Bion, ao introduzir a noção de continência, descreve o papel do terapeuta como um continente para as angústias do paciente. Ele recebe, processa e devolve as projeções emocionais de forma transformada, permitindo ao sujeito reorganizar suas experiências. Donald Winnicott, por sua vez, propõe o conceito de holding, no qual o terapeuta empresta seu ego ao paciente, criando um ambiente seguro onde este possa existir em sua autenticidade.
Ao introduzir um modelo de linguagem preditivo nesse espaço, há uma despersonalização inevitável. A relação terapêutica não é apenas um jogo de respostas e estímulos; ela se baseia na escuta singular e na presença do terapeuta como um ser humano que acolhe, compreende e ressignifica junto ao paciente. Se a tecnologia antecipa e sugere respostas, a relação se esvazia, e o terapeuta deixa de ser um continente para tornar-se um mero validador de padrões.
Além disso, ao padronizar respostas, essa ferramenta entra em contradição com a premissa fundamental da associação livre, que rejeita qualquer filtro prévio da fala do paciente. Se há previsibilidade, há também direcionamento, e, se há direcionamento, o espaço de expressão livre se reduz.
A Questão Ética e a Alienação do Discurso
Se a tecnologia pode prever padrões de discurso, ela pode também armazená-los, analisá-los e classificá-los. Isso abre um precedente perigoso no que diz respeito à ética e à privacidade dentro da clínica psicológica.
Quem teria acesso a essas informações? Que garantias existem de que essas análises não serão utilizadas para fins mercadológicos ou mesmo coercitivos? Em um cenário onde a vigilância digital já se impõe sobre todas as esferas da vida, transformar o discurso terapêutico em um dado computável significa inseri-lo em um sistema que pode usá-lo contra o próprio sujeito.
Além do risco ético, há um problema estrutural: se o discurso pode ser modelado e previsto, ele se transforma em um produto. Ele passa a ser um reflexo do algoritmo e não do sujeito. Byung-Chul Han já apontava essa questão ao falar sobre a não-coisa, onde o outro e seu discurso se tornam mera funcionalidade dentro da engrenagem digital. Se o sujeito é reduzido a um conjunto de padrões previsíveis, ele perde a própria capacidade de construir sentido fora daquilo que lhe é apresentado como opção.
Conclusão
A pesquisa divulgada pela CNN Brasil pode ter implicações revolucionárias na compreensão da linguagem e do funcionamento do cérebro, mas sua aplicação na clínica terapêutica deve ser vista com extremo cuidado. A previsibilidade do discurso pode ser útil para muitas áreas, mas não para um espaço que tem na escuta singular e na imprevisibilidade do encontro seus maiores potenciais de transformação.
No fim, a pergunta que fica é: queremos realmente tornar o discurso terapêutico um produto previsível, encaixável dentro de um algoritmo? Ou a riqueza da terapia está justamente no que escapa à previsibilidade, no que emerge no intervalo entre o que foi dito e o que ainda não pôde ser simbolizado?
Se a psicologia se render à lógica preditiva, corremos o risco de transformar a clínica em um simulacro de escuta, onde o que importa não é mais o sujeito, mas o padrão que ele representa. E, se isso acontecer, talvez já estejamos a um passo de uma nova alienação, onde até nossas dores serão administradas por um sistema que nos conhece antes mesmo de nos permitirmos existir.
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Referências
CNN Brasil. Pesquisadores criam modelo de computador capaz de prever conversas humanas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/pesquisadores-criam-modelo-de-computador-capaz-de-prever-conversas-humanas. Acesso em: 09 mar. 2025.
Freud, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago, 1996.
Bion, W. Aprendendo com a Experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Winnicott, D. O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
Han, B.-C. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
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